Aqueles que, como Alfonso Sastre, desejam a paz para Euskal Herria, vêem com preocupação a actual situação. Sastre denuncia que quem aposta na via policial “não deseja a paz, posto que sabem – e como vão ignorar uma realidade tão evidente? – que os seus pontos de vista nos afastam dela de uma forma criminosa”. Face a eles, é importante reivindicar a verdadeira noção de paz, visto que “não há paz à margem da justiça e da liberdade”.
Crime: 1) Delito grave. 2) Acção indevida ou repreensível (DRAE). Tudo o que de mais terrível pudesse ocorrer hoje em Euskal Herria, para quem é um fervoroso partidário da paz neste povo, tem estado a acontecer neste país durante os últimos anos. A que me refiro? Aos efeitos da aplicação na nossa vida da chamada Lei de Partidos, que é, digamo-lo com simplicidade e precisão, um verdadeiro crime contra a paz, como o atesta a cascata de ilegalizações e encarceramentos sob a teoria de que “tudo é ETA”, sem mais rigor que a consideração de que qualquer proximidade ideológica (neste caso, o independentismo) nos situa no seu ambiente, e que essas proximidades nos colocam plenamente, sem mais formalidades, no campo da delinquência e provavelmente na prisão como presos “comuns”, pois, como se sabe, “em Espanha”, como diziam no seu tempo os franquistas no poder, “não há presos políticos”.
Estes aprisionamentos e estas ilegalizações que o Governo espanhol tem vindo a provocar, com a colaboração do conjunto dos seus aliados, têm sido legalizados, senão legitimados, claro está, por uma corte judicial ao seu serviço, na qual verdadeiramente nos estranha não encontrar algumas opiniões que fossem dissidentes, em virtude da lealdade devida, por eles, aos princípios de uma justiça rigorosa e independente; de maneira que essa legalização do injusto e ilegalização do justo é já uma vergonha quase quotidiana entre nós, que vamos sofrendo os duros golpes inflingidos não só à razão ou ao “direito natural” mas também à própria legislação vigente em Espanha; e assim se implantou uma grave situação em que o que ocorre não só é injusto, mas também claramente ilegal desde um ponto de vista meramente democrático, ainda que isso não seja reconhecido e se ignore de forma olímpica.
O último trecho desta cascata tem sido particularmente inquietante, embora alguns factos fossem de esperar – e de temer – no panorama actual, gerado pela promulgação da antes citada Lei de Partidos; assim, as escandalosas ilegalizações são contudo apresentadas, e isso sem vergonha alguma, por notáveis juristas e jurisconsultos: assim, as da Acção Nacionalista Basca, do Partido Comunista das Terras Bascas, das Gestoras Pró-Amnistia e da Askatasuna, organizações perante as quais eu hoje tiro respeitosamente a boina.
O desenvolvimento desta situação é verdadeiramente terrível, na medida em que está a procurar impossibilitar, com toda a força do poder, a passagem à abertura de um processo de paz que pudesse conduzir Euskal Herria até ela.
Pela minha parte, eu, que não sou ninguém, dirijo-me neste momento aos políticos espanhóis – tanto aos que se dizem (e talvez o sejam noutros campos) de esquerda como àqueles que se sabem e o proclamam, embora às vezes de modo envergonhado, de direita e são (não podem ocultá-lo) herdeiros claros do franquismo; refiro-me, claro está, aos militantes do PP, no qual há algum brilhante sobrevivente daqueles tempos, como Manuel Fraga Iribarne, ministro que foi do ditador, e que se pode lembrar com o seu casaco branco tipo saariana e a sua camisita azul (mas sobretudo pelos seus actos, como durante as greves mineiras de 1963 e outros, tristemente notórios); a quem se seguiu uma corte de mais ou menos jovens herdeiros fiéis ao seu legado, todos eles super-espanhóis, para quem Espanha é uma ideia proveniente do Céu e, portanto, alheia ao curso da História. “Eterna metafísica de Espanha”, chamava Primo de Rivera (filho) a este monstro da epistemologia.
Dirijo-me então hoje a vocês, que provavelmente não lerão este artigo, que aparece – claro! – no “ambiente da banda terrorista”, para os informar, ainda que ironicamente (porque é impossível que o ignorem), de que a chamada “esquerda abertzale” é aqui a expressão política do animus da independência que “anima” (passe a redundância), como claro fica nos acontecimentos de cada dia, uma muito boa parte, quiçá a maioria, da população que habita nestes territórios... bascos. São já muitos os encarcerados sem outro delito que não seja o amor à sua pátria e ter procurado expressar esse amor seu através dos campos da política e da cultura.
Numa situação como esta, vocês não podem actuar como fizeram os dirigentes da Alemanha e da Itália, cujos estados puderam acabar com movimentos armados como a RAF e as Brigatte Rosse, respectivamente; porque aqui o olhar menos agudo alerta para a existência de um sério problema político e de um não menos sério apoio social, e vê a necessidade da acção pública de organizações políticas da esquerda patriótica, capazes de promover eficazmente a abertura de uma mesa de negociações (única via para a paz), em que a ETA se sentasse para iniciar e levar a cabo essas negociações. Para tal eventualidade, essas organizações políticas não podem fazer parte do coro das condenações formais, cuja inanidade, por outro lado, está suficientemente mostrada e demonstrada. Pôr essa condição para a legalidade de tais organizações patrióticas mostra que não se tem um verdadeiro desejo de paz, mas uma clara vontade de que a violência continue. Eu, que, como disse, desejo, desde a minha insignificância, fervorosamente a paz (e que já me ofereci várias vezes como senhora da limpeza da mesa em que as conversações se realizassem), estou, por esta altura, seguro de que quem aposta numa via policial “pura e dura”, como eles mesmos dizem, não desejam a paz, posto que sabem – e como vão ignorar uma realidade tão evidente? – que os seus pontos de vista nos afastam dela de uma forma criminosa.
Si vis pacem para bellum [Se queres paz, prepara a guerra], diziam os antigos; mas nós, que queremos a paz, temos que a preparar, e pormo-nos nesse caminho, começando por distingui-la de uma impossível e também indesejável pacificação, que implicasse que os inimigos se pusessem de joelhos e aceitassem ser submetidos às maiores humilhações e a abandonar os seus presos nas masmorras. Sabe-se que não se deve confundir a paz com a ordem pública, e temos de clamar, se queremos continuar com o latinório, Si vis pacem, para pacem. Se queremos a paz, preparemos a paz! Naturalmente, o que está em jogo é a mesma noção de paz. Nós pensamos que essa noção, teoricamente, é um problema resolvido pelo menos desde a publicação da obra de Immanuel Kant A Paz Perpétua. Não há paz à margem da justiça e da liberdade. A paz é, justamente, o oposto da tranquilidade dos sepulcros.
E poder-se-á chamar paz democrática a uma situação em que cento e cinquenta mil cidadãos ou mais não poderão expressar, de hoje em diante, as suas opiniões nas urnas?
Alfonso SASTRE
escritor e dramaturgo
Crime: 1) Delito grave. 2) Acção indevida ou repreensível (DRAE). Tudo o que de mais terrível pudesse ocorrer hoje em Euskal Herria, para quem é um fervoroso partidário da paz neste povo, tem estado a acontecer neste país durante os últimos anos. A que me refiro? Aos efeitos da aplicação na nossa vida da chamada Lei de Partidos, que é, digamo-lo com simplicidade e precisão, um verdadeiro crime contra a paz, como o atesta a cascata de ilegalizações e encarceramentos sob a teoria de que “tudo é ETA”, sem mais rigor que a consideração de que qualquer proximidade ideológica (neste caso, o independentismo) nos situa no seu ambiente, e que essas proximidades nos colocam plenamente, sem mais formalidades, no campo da delinquência e provavelmente na prisão como presos “comuns”, pois, como se sabe, “em Espanha”, como diziam no seu tempo os franquistas no poder, “não há presos políticos”.
Estes aprisionamentos e estas ilegalizações que o Governo espanhol tem vindo a provocar, com a colaboração do conjunto dos seus aliados, têm sido legalizados, senão legitimados, claro está, por uma corte judicial ao seu serviço, na qual verdadeiramente nos estranha não encontrar algumas opiniões que fossem dissidentes, em virtude da lealdade devida, por eles, aos princípios de uma justiça rigorosa e independente; de maneira que essa legalização do injusto e ilegalização do justo é já uma vergonha quase quotidiana entre nós, que vamos sofrendo os duros golpes inflingidos não só à razão ou ao “direito natural” mas também à própria legislação vigente em Espanha; e assim se implantou uma grave situação em que o que ocorre não só é injusto, mas também claramente ilegal desde um ponto de vista meramente democrático, ainda que isso não seja reconhecido e se ignore de forma olímpica.
O último trecho desta cascata tem sido particularmente inquietante, embora alguns factos fossem de esperar – e de temer – no panorama actual, gerado pela promulgação da antes citada Lei de Partidos; assim, as escandalosas ilegalizações são contudo apresentadas, e isso sem vergonha alguma, por notáveis juristas e jurisconsultos: assim, as da Acção Nacionalista Basca, do Partido Comunista das Terras Bascas, das Gestoras Pró-Amnistia e da Askatasuna, organizações perante as quais eu hoje tiro respeitosamente a boina.
O desenvolvimento desta situação é verdadeiramente terrível, na medida em que está a procurar impossibilitar, com toda a força do poder, a passagem à abertura de um processo de paz que pudesse conduzir Euskal Herria até ela.
Pela minha parte, eu, que não sou ninguém, dirijo-me neste momento aos políticos espanhóis – tanto aos que se dizem (e talvez o sejam noutros campos) de esquerda como àqueles que se sabem e o proclamam, embora às vezes de modo envergonhado, de direita e são (não podem ocultá-lo) herdeiros claros do franquismo; refiro-me, claro está, aos militantes do PP, no qual há algum brilhante sobrevivente daqueles tempos, como Manuel Fraga Iribarne, ministro que foi do ditador, e que se pode lembrar com o seu casaco branco tipo saariana e a sua camisita azul (mas sobretudo pelos seus actos, como durante as greves mineiras de 1963 e outros, tristemente notórios); a quem se seguiu uma corte de mais ou menos jovens herdeiros fiéis ao seu legado, todos eles super-espanhóis, para quem Espanha é uma ideia proveniente do Céu e, portanto, alheia ao curso da História. “Eterna metafísica de Espanha”, chamava Primo de Rivera (filho) a este monstro da epistemologia.
Dirijo-me então hoje a vocês, que provavelmente não lerão este artigo, que aparece – claro! – no “ambiente da banda terrorista”, para os informar, ainda que ironicamente (porque é impossível que o ignorem), de que a chamada “esquerda abertzale” é aqui a expressão política do animus da independência que “anima” (passe a redundância), como claro fica nos acontecimentos de cada dia, uma muito boa parte, quiçá a maioria, da população que habita nestes territórios... bascos. São já muitos os encarcerados sem outro delito que não seja o amor à sua pátria e ter procurado expressar esse amor seu através dos campos da política e da cultura.
Numa situação como esta, vocês não podem actuar como fizeram os dirigentes da Alemanha e da Itália, cujos estados puderam acabar com movimentos armados como a RAF e as Brigatte Rosse, respectivamente; porque aqui o olhar menos agudo alerta para a existência de um sério problema político e de um não menos sério apoio social, e vê a necessidade da acção pública de organizações políticas da esquerda patriótica, capazes de promover eficazmente a abertura de uma mesa de negociações (única via para a paz), em que a ETA se sentasse para iniciar e levar a cabo essas negociações. Para tal eventualidade, essas organizações políticas não podem fazer parte do coro das condenações formais, cuja inanidade, por outro lado, está suficientemente mostrada e demonstrada. Pôr essa condição para a legalidade de tais organizações patrióticas mostra que não se tem um verdadeiro desejo de paz, mas uma clara vontade de que a violência continue. Eu, que, como disse, desejo, desde a minha insignificância, fervorosamente a paz (e que já me ofereci várias vezes como senhora da limpeza da mesa em que as conversações se realizassem), estou, por esta altura, seguro de que quem aposta numa via policial “pura e dura”, como eles mesmos dizem, não desejam a paz, posto que sabem – e como vão ignorar uma realidade tão evidente? – que os seus pontos de vista nos afastam dela de uma forma criminosa.
Si vis pacem para bellum [Se queres paz, prepara a guerra], diziam os antigos; mas nós, que queremos a paz, temos que a preparar, e pormo-nos nesse caminho, começando por distingui-la de uma impossível e também indesejável pacificação, que implicasse que os inimigos se pusessem de joelhos e aceitassem ser submetidos às maiores humilhações e a abandonar os seus presos nas masmorras. Sabe-se que não se deve confundir a paz com a ordem pública, e temos de clamar, se queremos continuar com o latinório, Si vis pacem, para pacem. Se queremos a paz, preparemos a paz! Naturalmente, o que está em jogo é a mesma noção de paz. Nós pensamos que essa noção, teoricamente, é um problema resolvido pelo menos desde a publicação da obra de Immanuel Kant A Paz Perpétua. Não há paz à margem da justiça e da liberdade. A paz é, justamente, o oposto da tranquilidade dos sepulcros.
E poder-se-á chamar paz democrática a uma situação em que cento e cinquenta mil cidadãos ou mais não poderão expressar, de hoje em diante, as suas opiniões nas urnas?
Alfonso SASTRE
escritor e dramaturgo
Fonte: Gara