segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

3000 passos


O título alude, aproximadamente, ao número de passos que é preciso fazer entre o Sagrado Corazón e a Câmara Municipal de Bilbau, o trajecto da massiva manifestação que no sábado denunciou a política penitenciária dos estados espanhol e francês. Mas, tal como refere o autor, há muitos outros passos prévios que explicam por que é que dezenas de milhares de pessoas se reuniram no sábado nas ruas de Bilbau. Também se darão, deverão ser dados, novos passos que tornem mais próxima «uma futura Lei basca de Amnistia». Mas, claro, desta vez em clave de justiça.

Serão esses os passos necessários para fazer os dois quilómetros entre o Sagrado Corazón e a Câmara Municipal de Bilbo: 3000 passos, talvez mais algum. Tentaram impedir algumas dezenas de milhares de cidadãos deste país de percorrer pacificamente esse espaço. As razões não tinham nada a ver nem com a dignidade nem com a justiça.

Enquanto nos aproximamos do ponto de arranque, não vejo pessoal armado até aos dentes. Não há canhões de água. Não parece que vá haver fogo real, como já houve noutras ocasiões noutra avenida próxima. Parece que desistiram.

Outros passos mais nos trazem hoje aqui: milhares de concentrações em terras e bairros, centenas de reuniões e conversações para desbravar o caminho. Examino, como sempre nestas convocatórias, quem me acompanha. Malta jovem, muito jovem. Outros mais velhos, muito mais velhos. Gente conhecida de partidos, sindicatos, movimentos sociais, da cultura. Milhares de caras absolutamente anónimas. Está fresco, mas os sorrisos cúmplices, abraços, aquecem o ambiente.

Um professor da universidade que estará por aí, embora não o veja, dizia-me que o poder procura denodadamente anular a solidariedade com o preso e forçar a adesão irreflexiva e por decreto com a vítima, agora todo-poderosa. Já entendo a manobra do tribunal madrileno e daqueles que nos querem tirar das ruas. A pesada propaganda institucional apaga toda a personalidade ao prisioneiro para louvar a de quem agora ostenta uma patente inquestionavelmente superior. Surgem como antagónicos. O preso é, antes de mais, culpado, enquanto a vítima é sempre inocente. Substantivo e adjectivo não são intercambiáveis, a fórmula não se pode pôr em causa. É por isso que se esforçam por trazer estes para a cena pública, enquanto escondem os outros atrás dos muros. Pretendem assim abandonar uma leitura política que analise causas ou motivos... mas que sobretudo explore soluções. Mas alguma coisa não funciona. A gente que aqui se vai juntando é a mostra de que o simplista e absoluto «bom/mau» falha.

Arranca a manifestação. Impressionante. Penso na associação que lançou a primeira convocatória, a Etxerat, à espera da reacção do tribunal de excepção sobre o seu futuro. A expressão pública de apoio, a solidariedade, o carinho para com os presos, através das fotos ou de outros suportes, está vedada. Os sentimentos que a eles dizem respeito não se podem manifestar. Como se isto pudesse ser interceptado. As Mães da Praça de Maio prendiam no peito, em plena ditadura de Videla, as fotos dos seus filhos desaparecidos. Nesta «normalocracia» não se pode chegar a tanto.

Com os primeiros passos, atravancados, conversamos sobre o slogan. Direitos. É que numa verdadeira democracia se deveria fazer política, não reclamar direitos. Defender-se-iam aspirações políticas que fossem atractivas para a sociedade e que, com o apoio maioritário desta, se pusessem em prática. Mas é o que há: pedimos que não nos prendam pelas nossas ideias, reclamamos que não nos torturem. Pedimos que, ao entrarmos na prisão, possamos estar seguros de que o único direito restringido é o da liberdade de movimento. Que não estejamos desaparecidos para os nossos familiares, que conhecerão o nosso paradeiro final pela imprensa. Queremos saber quando teremos a pena cumprida e que, quando isso acontecer, continuaremos a ser pessoas íntegras. E pedimo-lo na primeira pessoa porque conhecemos a frase atribuída a Bertolt Brecht: «primeiro levaram os comunistas, mas não me importei com isso, eu não era comunista. Em seguida levaram...». E não é que invoquemos o verso por não nos importarmos. Se não o fizéssemos, não teria saído para as ruas de Bilbau este mar de gente. Invocamo-lo porque nos estão literalmente a levar todos. Sim, neste país para defender projectos ainda é preciso restabelecer direitos primeiro.

A maré avança, passo a passo. Nas últimas semanas acumularam-se dramas pessoais que exigiam, por força da realidade, a nossa presença aqui. Um rapaz com deficiência foi despido para poder visitar o seu amigo. Outros resistem à humilhação e regressam a casa de mãos vazias. Javier Elzo disse no El País que as mulheres submetidas a esta forma de tratamento são «visitadoras sexuais proporcionadas pela ETA». Se não pensou no que estava a dizer, deve corrigir o que disse. Se pensa assim, é porque é um autêntico canalha. E semelhante baixeza faz-me arrepios. Igor González desapareceu em transferências e conduções depois de ter tentado pôr fim à vida. Queria acelerar a última missão dessas instituições malditas. Patxi Gómez, que já cumpriu 20 anos de prisão, é outra vez reclamado, e anuncia aos seus verdugos que «podem-me deter, encarcerar, levar para onde quiserem, e no momento em que decidirem acabar com esta tortura sabem onde me podem encontrar». Sim, é preciso acabar com ela, quanto antes.

Nos seus títulos, a imprensa divulgava as cartas de um preso político. Depois, evitarão essa designação. Preferem substitui-la por «presos da ETA» ou caricaturá-la com o «autodenominado Colectivo». Por que é que lhes recusam a liberdade de associação e expressão? Cada vez mais presos políticos. Cada vez mais políticos presos. Cada vez mais opiniões políticas sobre as suas propostas políticas. Cada vez mais pressão política exercida sobre eles. Cada vez mais evidente se torna que será a política a resolver a equação. Amnistia. Se a esta palavra se juntar Internacional, abrir-se-ão as portas dos parlamentos. Se se antepuser a designação «movimento pró», o que se abre são as portas da prisão. Não é a Lei de Amnistia um instrumento político aprovado pelo Congresso espanhol, no caso para acabar - mal - com um problema? É um delito reclamar uma futura Lei basca de Amnistia que supere este outro, mas desta vez em claves de justiça? O conceito possui duas vertentes: o regresso dos perseguidos juntamente com a superação definitiva das causas que geraram a repressão. Haverá algo mais justo que esta reivindicação? Precisamente por isso reprimem com total violência a voz que a reclama. Quem nega às consequências deste conflito a sua condição política, dificulta os passos que conduzem à sua resolução.

Esses passos que agora se aligeiram ao descer da Praça Biribila. Fartos de tanto caminho a subir, agradece-se a descida. É que a imposição contínua gera cansaço. É o agravo incessante de um sistema a que se atrevem a chamar Administração de Justiça. Será mais apropriado que o chamem Imposição da Vingança. Luigi Ferrajoli, uma eminência penalista internacional diz que «a pena não é o melhor modo de satisfazer o desejo de vingança; pelo contrário, só se pode justificar com o fim de remediar e de prevenir as manifestações de vingança». Que reveja estas palavras o ministro perito em sequestros, que confunde a realidade com os seus desejos. É ele que se empenha em manter reféns, não sabemos se para benefício do seu projecto político, certamente para saciar a sua crónica sede de vingança.

Dou o último passo antes de ficar imobilizado entre a compacta maré humana. Oiço mas não escuto a intervenção pelos altifalantes. A minha mente está noutro sítio. Um pensamento nos colegas e nas colegas que tenho dentro arranca-me um sorriso fugaz. Pessoas inteiras, enormes. Voltarão depressa, digo para mim próprio. Mas imediatamente sobrevém-me a lembrança desses que jamais regressarão. E fico com os olhos húmidos.

Não. Este não pode ser - não será - o último passo.

Julen ARZUAGA
Giza Eskubideen Behatokia / Observatório de Direitos Humanos

Fonte: Gara