segunda-feira, 16 de março de 2009

A aldeia gaulesa tem computador


Antonio Alvarez-Solís aborda a questão nacionalista através de um prisma fundamentalmente económico, submetendo a análise a viabilidade de hipotéticos estados como o basco no contexto financeiro internacional e desmontando falsos dogmas como o que sempre vaticinou a catástrofe das nações que se separem do tronco do Estado espanhol.

Em numerosas ocasiões se falou, a partir dos estratos dominantes, do pobre futuro que aguarda muitas nações agora sem estado se alcançassem a sua independência. Esta afirmação constitui um de tantos dogmas que se consideram irrefutáveis por parte dos povos dominadores. Alega-se como dado básico a perda de um mercado unicamente possível económica e politicamente no seio do Estado que exerce a soberania. Costuma mencionar-se também a nula presença que esses países tão penosamente libertos teriam na cena internacional. Os dois argumentos contêm, digamos já desde o início, uma falácia edificada sobre dados radicalmente inconsistentes.

Comecemos pela primeira dessas afirmações: a perda da quota de mercado no contexto do Estado ou mercado interior. O que fariam, repetem, a Catalunya e Euskadi sem Espanha? Na realidade, muitas dessas nações reprimidas estatalmente contribuem com produtos importantes que se comerciam sob uma denominação genérica: produtos espanhóis, franceses ou italianos. Muitos dos barcos construídos em Espanha foram-no em estaleiros bascos e graças a uma sofisticada tecnologia basca. Que teria feito Espanha sem essa indústria naval ou qualquer outro mercado criado na periferia catalã ou basca?

Espanha apenas teve um perfil de industrialização em Euskadi e na Catalunya, o resto do território que a constitui ainda mantém um matiz rural. Mais ainda: muitos produtos bascos com notável distribuição internacional foram produzidos em complexos industriais e mediante iniciativas que se devem a um esforço cooperativo, com o que se elimina obviamente o fantasma grandiloquente do grande empresário espanhol criador individual e prepotente de uma suposta riqueza. Estamos, pois, perante um aparelho produtor distinto e próprio. Mais ainda, essa riqueza de origem catalã ou basca contribui de modo decisivo para o sustento da máquina orçamental e social do Estado espanhol.

Para não prolongar a argumentação, realcemos o que essas duas nações sem poder político próprio significaram e ainda significam para dinamizar a vida laboral em Espanha, com trabalhadores que nas suas terras de origem viveram ou vivem uma existência de baixo nível humano; trabalhadores que partidos como o socialista ou o popular levantam contra a realidade basca em nome de não se sabe que princípios, a não ser que tomemos em consideração o sustento de um Estado arcaico que tem como única capacidade manter uns estratos políticos, burocráticos ou escassamente produtivos nos quais se injectou um populismo patriótico e desacelerador de carácter defensivo. Disto têm perfeita noção as minorias dirigentes de Espanha, que sempre sentiram um temor profundo perante a possibilidade de um empobrecimento muito perigoso no caso de se dar a independência da Catalunya ou de Euskadi.

O pedido reiterado de solidariedade interterritorial por parte de Madrid, quando se fala de política autonomista, tem essas raízes. Como se a solidariedade certa não se desse num intercâmbio comercial natural com benefício para ambas as partes. O único perigo que poderia gerar a independência das nações agora amarradas como vacas leiteiras à manjedoura espanhola afectaria unicamente essa massa já citada. Pesa também no centralismo espanhol o risco que correria uma super-estrutura financeira que sobreviveu graças ao Estado concentrado em Madrid.

À Espanha oficial ou por ela contaminada – com umas massas atraídas pelo medo e pela glória – não a preocupam realmente assuntos como o terrorismo mas antes o facto de que uma paz igualitária facilitaria a independência dos povos basco e catalão, com o que poderia aumentar a debilidade da Espanha tradicional. Essa Espanha, que é em grande medida a vigente e que ainda não digeriu a essência dos avanços materialmente revolucionários que implicam as actuais descobertas científicas e tecnológicas. Possivelmente, Espanha é um país que ainda tem a alma surpreendentemente embuçada em roupagens calderonianas. Para confirmar este diagnóstico e explicar as suas raízes não é preciso uma análise sociológica muito refinada, basta ler os ilustrados do tempo de Carlos III, muitos dos quais padeceram prisão por incitar a Coroa a realizar mudanças radicais na estrutura social espanhola. Perante esta realidade, não é surpreendente que a Catalunya e Euskadi vivam num permanente estado de violência como resposta à asfixia institucional que sofrem por parte da agressividade institucional espanhola. O Parlamento espanhol, que deveria liderar o caminho para a modernidade, é composto, infelizmente, por uma banda de corneteiros e uma cavalaria à carga. A situação evidencia que a defesa contra os chamados terrorismos periféricos dá robustez à unidade interior dos espanhóis.

Os espanhóis deveriam entregar-se durante um certo período de tempo à consideração dos males que lhes causa o seu imobilismo. Diz Leonardo Boff no seu livro Os Sacramentos da Vida que “há momentos da existência em que a consideração do passado constitui a verdade do presente”. A partir desse horizonte se explica também o momento que vivem os bascos.

Com as recentes eleições ainda bem presentes – sobre as quais os julgamentos e as detenções de bascos soberanistas actuaram com ferocidade –, é conveniente aceitar esta frase do teólogo da libertação. Os bascos recordam sempre, sobretudo em tais momentos singularmente políticos, o que tem vindo a constituir a sua história desde que o Reino de Navarra foi apresado pela Coroa espanhola. A partir dessa consideração hão-de focar a verdade do presente, como diz Boff noutra parte do livro citado: “A luta de um povo pela sua libertação transforma-se em sacramento”.

Nem Euskadi perderia qualidade económica ao separar-se politicamente de Espanha, ainda hoje, apesar da crise que fere todo o universo, nem ficaria isolada como uma pequena aldeia gaulesa. Neste sentido deve sublinhar-se que algumas das técnicas que caracterizam o século, e falo concretamente das informáticas, têm, entre os seus muitos inconvenientes para a liberdade e a humanização do pensamento, uma vantagem indiscutível: permitem uma universalização que, sobrepondo-se à globalização imperialista, será capaz de construir essa nova política em que os estados carcomidos pela corrupção cedam o passo a formas com um maior alcance democrático.

Essa universalização há-de assentar os seus principais pilares no renascimento de nações que, tendo carecido da contaminação estatal, podem criar uma democracia directa graças às modestas dimensões geográficas e demográficas que geralmente têm. O que constitui o núcleo verdadeiro das nações costuma ser de limitado volume e distâncias curtas. Normalmente, quando se excedem tais medidas as nações dissolvem-se em estados.

Vista assim a questão, cabe acrescentar que a aldeia gaulesa goza hoje do benefício do computador. O poder de uma nação verdadeiramente capaz de se controlar a si mesma pode evitar perfeitamente a concentração suicida do capital, enfrentar os tubarões financeiros que se refugiam em lonjuras inacessíveis e aproximar-se sem afã de dominação aos outros povos.

O socialismo real seria o coração desse novo universalismo. Os mercados planetários faliram sob o seu próprio peso e já não capazes de gerar mais-valias senão pelo recurso aos enredos financeiros ou militares. A libertação há-de ser consumada pelas nações incontaminadas de estatalismo e, dentro delas, o papel libertador corresponde aos trabalhadores, que não podem continuar implicados em nenhum imperialismo e, ainda menos, no irritante imperialismo social-democrático.

Antonio ALVAREZ-SOLÍS
jornalista

Fonte: Gara