sábado, 7 de março de 2009

Na fronteira da decência


Nem os dados manipulados nem os grandes relatos sobre as eleições reflectem a realidade basca como ela é. Para reconhecer este país é necessário esgaravatar a realidade configurada pela “micro-história” das suas gentes. Além de realizar essa tarefa, Alvarez-Solís apresenta uma análise dos cenários que se abrem. Como sempre, com a decência por bandeira.

Começa assim o editorial do principal periódico que tem o mundo tricéfalo do Partido Popular: “Os bascos estão de parabéns. Aconteceu o que este jornal pedia e queria que acontecesse: que as urnas pusessem fim a trinta anos de nacionalismo”. Avance a minha certeza moral: esse periódico atravessou a fronteira da decência. Como a atravessou, vociferando outra cabeça do PP, que disse com manifesta loucura que acabou o “terrorismo” nacionalista. Duas obscenidades manifestas que, no caso de os seus autores as terem expelido com a convicção de serem admitidas, falam de uma clamorosa pobreza intelectual por parte dos destinatários de tão toscas barbaridades. Já sei que Espanha, considerada nos seus estratos poderosos, é romba de engenho e débil de razão, mas ainda tenho a esperança de que um determinado número de espanhóis saibam distinguir a farsa cortesã da realidade. Acredito nisso, também, não como resultado de uma análise severa, mas pela urgência que tenho de encontrar nos meus adversários um mínimo de luz que nos permita ler juntos o mesmo livro dos acontecimentos, ainda que seja na busca de considerações diversas. Que panorama, que panorama desmedido junto a estas manipuladas eleições bascas!

Trata-se, repito, de decência; ou, melhor ainda, de indecência. Façamos uso do dicionário: «Indecência - Falta de decência ou de modéstia. Dito ou facto vituperável ou vergonhoso».

Quem é que pode sustentar, à vista dos acontecimentos quotidianos e até com o resultado eleitoral na mão, que o nacionalismo já não constitui o coração de Euskadi? Somemos os votos e o Euskadi nacionalista supera o Euskadi composto por camadas que agora analisaremos. Acrescentemos ainda a esses votos mais de cem mil cidadãos que foram eliminados da contagem por tribunais adversos à “basquidade”, por leis iníquas e vazias de Direito, por instituições repressivas que operam já sem máscara moral alguma. Somemos tudo e chegaremos a mais de 60% de bascos que respiram nacionalismo e que sonham com a liberdade do seu povo. Perante este facto categórico, não será indecente brincar a um espanholismo libertador, sobretudo dando a esse espanholismo uma aura de “basquidade”?

Os peritos reais nestes estudos hão-de de enquadrar a sua reflexão em termos de uma verdadeira psicologia política. Refiro-me à “basquidade” de não poucos votantes socialistas e de quase todos os votantes “populares”. Não haverá um votante socialista que intimamente não se resigne a ser plenamente basco depois de se ter estabelecido em Euskadi, onde ele ou os seus antecessores assentaram arraiais para melhorar a escassa qualidade de vida que tinham na sua terra de origem? Às vezes acontece que a melhoria social alimenta um caruncho dorido de origem, algo parecido a um ressentimento silencioso na relativa plenitude que se obtém. Se esta análise é válida e a suscito como ponderação do evento eleitoral, estamos perante um voto basco ou perante um espanholismo ressuscitado à sombra de uma democracia previamente falsificada e embutida de espanholismo? Tentação possível de trabalhadores.

No que diz respeito aos bascos do Partido Popular, são gente de amor basco ou bascos da Corte e baile na Capitania? A riqueza costuma tender para a urbanidade. Ser alguém perante o rei alheio abrilhanta o que quer mudar a paternidade original pela colonial. O Império britânico manobrou este tipo de habilidades com um êxito inquestionável. Quantos hindus ou nativos africanos vestiram as casacas imperiais concedidas por Londres. Mais, quantos desses hindus ou africanos ergueram fortunas à sombra do menosprezo da sua origem. Tentação possível de brilhantes cortesãos.

Sim, tentações possíveis.

Mas os votos são os votos. O que faz falta é que não se contem como na intendência: dois e dois são cinco e eu levo um.

Euskadi é profundamente nacionalista. Uma senhora nacionalista de boina azul confessava-me num aeroporto que tinha proibido o seu marido de assistir a um encontro da direita basca afinada por Madrid porque a incomodava profundamente a permanente ofensa espanhola à nação euskaldun, cujo sangue lhe corria nas veias. Uma pessoa aprende muito nesses encontros, em cujo âmbito trabalham os peritos em micro-história, tão necessária para não se extraviar nos grandes adornos. Mas para aprender isso é preciso que o que aprende não espere ser premiado com o corno da abundância. É um saber austero, de cínico grego apenas aspirante ao raio de sol interceptado pelo monarca.

E agora, que fazer? Para já, façamos contas, que é sempre útil.
Governo de PSE com PP, embora seja com o apoio externo dos “populares”. Podem os socialistas apresentar isso na rua, mesmo que os seus seguidores tenham renunciado ao O de operário? Outra vez Indalecio Prieto enredando com a sua oratória operária para acabar renunciando no exílio ao seu passado pseudo-revolucionário?

Outra vez um “redondismo” na entrega definitiva? Que novo Euskadi gerará realmente uma falsificação tão antiga? Quiçá alguns donativos de Madrid sejam atirados para o triste cepo político, mas com isso o povo basco vai alcançar a plena decisão sobre si mesmo? Quer dizer que os bascos apenas podem melhorar se funcionar o pipeline de uma Madrid já tão despida?

Governo do PNV com os socialistas? Essa solução equivaleria a morder a maçã envenenada pela madrasta. E já sabemos como choraram os anõezitos perante final tão infeliz. Além de que não há lugar a enganos: o lehendakari Ibarretxe ganhou estas eleições, apesar das travessuras dos filhos pródigos na sua família política, que agora precisarão de agradecer ao pai o touro da engorda e as sandálias douradas.

Governo em minoria. Que é o caminho para uma nova convocação de eleições, urgente se o Governo é socialista; mais sossegada se é de Ibarretxe.

Algo que nestas contas se há-de anotar na coluna do “deve”: há que resgatar para a recta governação de Euskadi a liberdade do “abertzalismo” de esquerda. Nessa tarefa hão-de estar os comunistas, sem outro compromisso que o devido à nação basca que aspira a um futuro realmente socialista. Nessa tarefa hão-de impor-se as bases do PNV. Nessa tarefa há-de recompor-se o EA. Nessa tarefa há-de entrar, sem encaixes teóricos, o Aralar. Nessa tarefa hão-de estar, como já estão com visão política, os dois poderosos sindicatos abertzales, porque o sindicalismo basco define o solo nacional basco.

Cada cidadão tem de formular com honradez a pergunta íntima: constitucionalismo ou nacionalismo? Mais simplesmente: “basquidade” ou espanholismo? É preciso clarificar as águas turvas pelas manobras dos aparelhos políticos com uma vontade de poder social. O nacionalismo significa a capacidade para construir uma estrutura alimentada continuamente pela nação. O outro, o constitucionalismo, continuará a ser a náusea basca, o suscitador da sua violência e das outras violências. Os números continuam a sair nacionalistas. Só faz falta que todos os ribeiros vão dar ao grande rio. É assim que me sai a leitura dos resultados eleitorais. As outras interpretações, de um imperialismo de pechisbeque, soam-me a furto ou, equiparado à violência, a roubo; mas é sempre complicado que as forças do poder ocupante roubem, porque isto gera um escândalo moral estrondoso. Há que ser decentes.

Antonio Alvarez-Solís
jornalista

Fonte: Gara