quinta-feira, 10 de setembro de 2009

Arenys de Munt não fica em Euskal Herria


Cada vez que folheamos um jornal ou vemos um telejornal, tropeçamos no anfiteatro das sombras e da uniformidade que Franco cimentou sobre milhares de cadáveres

Arenys de Munt é uma terra de seis mil habitantes na província de Barcelona, onde uma associação cívica decidiu realizar um referendo no dia 13 de Setembro com a pergunta em catalão: Está de acordo que a Catalunya se torne num estado de direito, independente, democrático e social integrado na União Europeia?

Nesta terreola perdida nas montanhas, a violência política nunca existiu e sempre se respeitou a lei. As suas gentes são, portanto, pacífica e democraticamente responsáveis. E todo o mundo tem a certeza de que continuarão a sê-lo qualquer que seja o resultado da consulta. Bem, todos não, porque o PP, a Falange das JONS e o PSOE-PSC se posicionaram contra este referendo. Em suma, houve a mesma coincidência ideológica que existe em Euskal Herria para se opor à presença da esquerda abertzale em todas as eleições. O que se segue é já conhecido. Ciutadans acorre à Delegação do Governo para avisar, o PP exige que o estado de direito intervenha, o magistrado do Estado interpõe um recurso em tribunal contra a consulta, os meios afectos a Madrid posicionam-se, os dois vereadores da terra pertencentes ao PSOE-PSC votam contra quando os seus chefes exclamam que há que respeitar a ordem vigente e a Falange solicita autorização para se manifestar na terra no dia do referendo. Em resumo, vemos como pacífica e democraticamente em Arenys de Munt não há maneira de escapar ao terrorífico e sombrio fantasma do fascismo espanhol invocado em uníssono pelo PSOE-PSC, pelo PP e pela Falange Espanhola. A Constituição e a corrupção política permitem essa comunhão de ideias que acabam por coincidir com o facho dos falangistas.

Os homens de pescoço branco e camisa azul tentaram desumanizar um pequena e pacífica terra catalã por se atrever a organizar uma consulta popular, e em Euskal Herria querem transformar em diabo - utilizando a propaganda política - quem exige o mesmo. Ambos os casos nos ajudam a compreender como a autoridade considera ameaçadora para a sua própria integridade a decisão de um referendo livre e em liberdade. A vice-presidente espanhola, De la Vega, num ataque de sinceridade, disse, para acabar com a controvérsia de Arenys, que o direito de autodeterminação e a independência não cabem na constituição. Que importância tem a opinião do povo em democracia! Ela, que é jurista, deveria ler os tratados internacionais que o seu país assinou.

O Estado espanhol passou trinta anos em Euskal Herria a dizer que sem violência tudo é possível, que a Constituição era o lado mais amável e mais bonito da realidade, uma espécie de saco de Pai Natal que só continha dádivas e requintes para tornar a vida mais agradável aos que eram crianças. Na altura própria, recusaram-nos a possibilidade de debater o conteúdo real, e agora vem-se a saber que tudo o que se meteu lá dentro regressa e retrocede às crianças de ontem, adultos de hoje. Os ares da transição sofreram uma regressão e, quando abrimos o saco, não só tomam um aspecto rudimentar como se mostram com manifesta hostilidade em Arenys de Munt, infundido um temor como se uma caveira com tricórnio fosse aparecer numa pequena janela.

Este medo faz com que notemos unicamente os aspectos socialmente mais benignos da nossa existência, e se alguém se lembra do que trafica armas e fala de paz, da língua de serpente do não à OTAN, dos benefícios penais a delinquentes condenados como Galindo, Vera e Barrionuevo, da tortura sem punição em Euskal Herria e da dispersão dos presos bascos, transforma-se num pássaro de mau agoiro porque mais depressa lhes mostra a mentira que o delito. Por isso, cada vez que folheamos um jornal ou vemos um telejornal, tropeçamos no anfiteatro das sombras e da uniformidade que Franco cimentou sobre milhares de cadáveres. Ali, habita a maldade humana, a que encheu as valetas de inocentes, a que voltou a pintar as paredes dos cemitérios e a dos passeios sem retorno dos campos extrajudiciais. Nesse anfiteatro, as entidades financeiras jogam hoje com o nosso dinheiro, vota-se em ladrões ilustres para que nos representem e jogam com a brevidade da nossa memória porque hoje mais que nunca aquilo que afecta a colectividade depressa é esquecido. Os que nos forçaram a ser testemunhas deste pútrido ambiente de sombras valem-se de um pálio amigável e de correame que não se esfumaram na transição e que apenas obtiveram prebendas em vez de pedir perdão.

Pelo desígnio divino pode-se proibir uma consulta popular não vinculativa em Arenys de Munt, um campeonato de mus [jogo de cartas], um jogo de futebol e uma exposição de fotos em Euskal Herria. O redentor que quer transformar a nossa vida e os nossos próprios valores é um ser anormal, estigmatizado por um pensamento de ódio que ficou historicamente cristalizado. Gostaria de se perpetuar sem que o chateassem com o direito à autodeterminação e à independência, para se valer da totalidade e da uniformidade do paraíso com que Franco também sonhou. Mas esse paraíso com que sonha seria terrivelmente doloroso. A natureza humana também marca a sua resposta à sombra reunida nesse anfiteatro.

Francisco LARRAURI
psicólogo
Fonte: Gara