segunda-feira, 22 de março de 2010

Primavera con una esquina rota / Primavera num espelho partido (*)


Começa a Primavera, «marcada pela fenda do glaciar que une Toulouse a Dammarie-les-Lys» e, segundo Joxean Agirre, a versão oficial do ocorrido em torno da morte de Jon Anza «partir-se-á em mil pedaços graças ao gelo que agora nos aperta às portas de Abril». Todavia, com o degelo a Primavera «fará fluir a corrente imparável de que necessitamos».

Enquadrado pela ditadura que o Uruguai viveu entre 1973 e 1985, Mario Benedetti escreveu há muitos anos Primavera con una esquina rota. Nesse livro contou-nos uma história aberta em várias frentes, na qual nos aproxima da forma como o exílio e a prisão afectam as pessoas, tanto aquelas que passam directamente por isso como as que as rodeiam. É um conjunto de histórias protagonizadas por gente essencialmente normal, sem perfil heróico, que fala de causas e consequências, do que escolhemos e do que vem até nós, de situações imperfeitas e, portanto, comuns às pessoas que não se têm na conta de infalíveis ou invulneráveis. Embora por vezes a memória nos atraiçoe, estou capaz de jurar que foi o primeiro livro que li na prisão.

O acaso quis que este artigo se publicasse no domingo em que oficialmente inauguramos a Primavera, esse compêndio de tópicos sazonais que nos convida a tirar das gavetas outras peças de roupa e a deixar que as botas durmam no fundo do armário. Esta Primavera, como se se tratasse do espelho estilhaçado cuja aresta denuncia a sua imperfeição, começará sem se assinalar a si mesma. Vem gélida, congelada como o olhar azul dos alpinistas sepultados sob o gelo e dos que nenhuma expedição conseguiu resgatar. Marcada pela fenda do glaciar que une Toulouse a Dammarie-les-Lys. Traz consigo o frio da morgue em que, diz a versão oficial, Jon Anza permaneceu durante mais de dez meses. Era óbvio que Jon estava morto; poucas dúvidas - e esperanças - tínhamos a esse respeito. Quem o conheceu, pressentiu-o praticamente desde o início, porque Jon era metódico, não deixava nada ao acaso e foi pontual em todos os encontros que marcou na sua vida.

Sabíamos que o tinham matado ou, o que vai dar ao mesmo, que tinha morrido nas mãos dos que o interceptaram naquela viagem misteriosa, possivelmente o único trajecto em toda a França em que um cidadão pode evaporar-se sem que fique registo numa câmara dos vagões, nas estações, na cidade de partida e destino. Um espaço opaco na controladíssima República. Desde que Rubalcaba se auto-ilibou em público, comecei a explorar nos fundos das hemerotecas para comparar a sua reacção com a dos seus colegas nos tempos do GAL. Jesús Egiguren e Odón Elorza eram, nessa altura, porta-vozes do PSOE guipuscoano, e em algumas das suas intervenções públicas acusavam o Herri Batasuna de «fazer vitimismo» quando denunciava os atentados parapoliciais e apontava o partido de ambos como responsável político desses atentados. Pouco tempo depois, Amedo, Domínguez, Bayo, Dorado e outros mais começaram a dar com a língua nos dentes, e o PSOE de Felipe González e Pepe Barrionuevo deixou de ameaçar com a instauração de processos.

Rubalcaba tem-se movido em secretarias de estado e ministérios desde 1982, de maneira que tem perfeita noção do valor do que é afirmado e, claro, da importância do que se silencia. De forma que agora defende que se deite um manto de cal viva informativa sobre os furos, as revelações, os dados e as contradições que apontam o Reino de Espanha como implicado no desaparecimento de Jon Anza. Os sopros da procuradora Kayanakis, as declarações do comissário François Bodin no sentido de não pôr de lado a hipótese de que um serviço estrangeiro tenha interferido no caso, o aluvião de dados provenientes da imprensa crítica gaulesa, a atitude hermética do Ministério da Justiça, impedindo a participação de médicos designados pela família na autópsia, constituem uma base probatória suficiente na sobrecarregada memória dos habitantes de Euskal Herria. As «acções legais» que o ministro anuncia não vão enterrar a verdade. A água que entra pelas gretas diminutas das rochas da superfície terrestre cria uma imensa pressão quando se solidifica, capaz de partir a pedra mais sólida. Do mesmo modo, a versão inverosímil construída pelas autoridades francesas para encobrir o se passou partir-se-á em mil pedaços graças ao gelo que agora nos aperta às portas de Abril. A seu tempo.

Mas o sobressalto da terça-feira passada numa localidade próxima de Paris também não encaixa na bondade climatérica que associamos à Primavera. À espera do que a organização armada diga, o desenvolvimento e as consequências do que ocorreu afiguram-se como um contratempo inesperado. Também como um desenlace fortuito e indesejado. Em Euskal Herria deram-se muitas situações parecidas, mas na presente conjuntura devemos analisá-las a partir de um prisma estritamente político, não como fruto da fatalidade.
Porque a detenção e o tiroteio de Dammarie-les-Lys foram precedidos pela decisão de levar a cabo uma acção armada de envergadura, fossem os seus fins o abastecimento ou qualquer outro, e esse factor é substancialmente político em toda essa cadeia de incidentes. Como em tantas outras ocasiões ao longo dos seus mais de cinquenta anos de existência, a sociedade e os agentes políticos e sociais aguardam com expectativa a tradução prática que a ETA faz da «leitura política» que o conjunto da esquerda abertzale e outros sectores efectuaram. Existe um mandato manifesto a cumprir que, além de resultar de um vasto processo de reflexão interna, a própria organização armada assumiu como próprio e vinculativo.

Sobre essa base indiscutível, o novo ciclo político, o processo democrático em marcha não é compatível com os apetrechos e usos de fases anteriores. A mim, também não me escapam as dificuldades que custa enfrentar «a nu» os desafios que nos propomos, mas das duas uma: ou assumimos, com todas as consequências, que o caminho a percorrer exige que o façamos com outros instrumentos de luta ou, posta de lado a viabilidade de acumular forças e activar a sociedade de forma eficaz, nos lançamos sozinhos por outra via. Esta segunda opção, tão legítima quanto conhecida, não tem outro sustento que não seja o voluntarismo que nos mantém vivos, o nervo da resistência e da fidelidade a um esquema de intervenção determinado. Há muito que conta com guionistas e apoio popular, mas carece de alcance e de possibilidades de avanço. Não se trata de pôr ninguém entre a espada e a parede; menos ainda de condicionar as decisões que cada qual há-de tomar. Ao fim e ao cabo, ninguém é dono, em exclusivo, do património representativo do último meio século de luta em Euskal Herria. Mas penso que a maior demonstração de força que convém fazer neste momento passa por transmitir a todos os âmbitos de acção a linha traçada em «Zutik Euskal Herria». Dizê-lo em voz alta, reclamá-lo, é sublinhar que a única coisa de que somos devedores é da determinação de vencer. E é o que há a fazer agora.

Que não nos aconteça aquilo que, como conta Benedetti em Primavera con una esquina rota, aconteceu aos passageiros de um comboio que viajavam sentados, frente a frente, cada um na sua janela, e falavam sem se aperceberem de que, ao referirem-se à paisagem que observavam, o comentário do que olhava para a frente nunca era exactamente o mesmo do que olhava para trás. De forma diferente do que se passa com a verdade sobre quem matou Jon Anza, nesta viagem o frio não nos ajuda. Com o degelo, a Primavera fará fluir a corrente imparável de que necessitamos.

Joxean AGIRRE AGIRRE
membro da esquerda abertzale
Fonte: Gara

(*) Primavera num espelho partido: título da edição brasileira (Alfaguara, 2009) da obra de Mario Benedetti Primavera con una esquina rota.