domingo, 17 de maio de 2009

A Espanha real (ou a não Espanha)


Se foi ruidoso o acolhimento da maior parte das pessoas aos reis espanhóis e ao seu hino, em Mestalla, não menos estrondoso foi o que a TVE fez e as suas consequências. Apesar dos discursos reaccionários que dizem que não há que misturar a política com o desporto, o que acontece nos campos de futebol, graças à desinibição geral, acaba por ser um retrato bastante fiel da sociedade.

Alguém com melhores dotes para a literatura do que aquele que agora escreve poderia fazer um delicioso retrato com a imagem do rei e da rainha de Espanha saudando com o seu aceno pessoal de mãos as dezenas de milhares de pessoas que em Mestalla os assobiavam e vaiavam até ao ponto de tornar inaudível a Marcha Real, que estava a tocar, seguramente, com seis vezes mais potência do que o resto da música ambiente. O gesto é tão ridículo como o de um imperador romano a saudar as massas do Coliseu que pedem, rugindo, que os leões o comam a ele e que todos os gladiadores sejam postos em liberdade.

O acolhimento na final da Copa evidenciou que, pelo menos aos olhos de uma boa parte de Euskal Herria e da Catalunya, o rei vai nu, e não só por ser monarca – há uma evidente pulsão republicana em tão sonora vaia – mas também por espanhol. Desconheço o que iria na cabeça dos reis enquanto faziam boa cara a semelhante tormenta, mas é óbvio que a sua corte está repleta de cegos ou aduladores. A primeira vice-presidente do Governo, María Teresa Fernández, afirmou que a assobiadela é um acontecimento isolado que “não ofusca” o respeito da maioria pela Monarquia e que as sondagens reflectem. O seu opositor – mas neste caso apoiante – Mariano Rajoy insistiu no assunto afirmando estar convencido de que “a imensa maioria” dos adeptos do Fútbol Club Barcelona e do Athletic de Bilbao estão, “como todos os espanhóis, com o Rei, a nação e o hino”.

Pode ser que, na verdade, – a Magistratura do Estado e a Procuradoria talvez possuam dados – Mestalla estivesse cheia de “batasunos”, “sucessores” e “instrumentalizados” que sortearam camisolas blaugranas e vermelhas e brancas e pagaram as dezenas de euros de cada entrada só para ter o prazer de vaiar Juan Carlos I. Mas parece ser mais sensato pensar que os milhares de adeptos que se deslocaram a Valência desde a Catalunya e de Euskal Herria são uma representação multiforme das suas respectivas comunidades, unidos pelo amor ao seu clube e não por uma ideologia concreta. E se, apesar disso, a maior parte se associou na vaia, mais vale reflectir sobre o que acontece em terras bascas e catalãs para que os símbolos de Espanha sejam tão ruidosamente rejeitados, em vez de dizer, como fez a porta-voz parlamentar do PP, Soraya Sáenz de Santamaría, que são “uma minoria que não entende nem de futebol nem de política”. A realidade não é apenas a que se pode ver no palco do Santiago Bernabéu de quinze em quinze dias ou na Condomina quando são presenteados com um jogo da selecção espanhola. Estes assobios também fazem parte da Espanha real que seria uma não Espanha se a deixassem escolher.

Mas a reflexão democrática não é a marca de identidade da Espanha oficial. Basta ver o que a TVE fez: primeiro, quando começaram os assobios, tirou a emissão de Mestalla e foi para San Mamés e para a Plaza de Catalunya; e depois apresentou o momento do hino em diferido e editado, metendo a Marcha Real em primeiro plano e deixando a vaia como um rumor de fundo. Depois, durante todo o jogo evitou os grandes planos das bancadas cheias de ikurriñas e senyeras. A TVE diz que não houve censura nem retoques, que retransmitiram o hino como o tinham gravado. As gravações áudio da ETB, da TV3 e da Cadena Ser – acessíveis por Internet – mostram aquilo que se ouviu no campo.

A estupidez da TVE saldou-se com a cabeça do director do desporto a rolar pelas escadas abaixo, acusado de ter incumprido ordens directas sobre a emissão. Seja como for, a actuação da cadeia pública, em vez de emudecer os assobios, converteu-se no melhor altifalante do descontentamento dos adeptos relativamente à Marcha Real e a tudo o que significa. E conseguiu que meios internacionais se interessassem pelo jeering que bascos e catalães dedicaram ao hino e aos reis.

Em contraste com a antipatia suscitada de um modo geral pelos mais altos símbolos espanhóis, para a posteridade ficará a irmanação entre as torcidas e o facto de ver os jogadores do Barcelona a saudar os apoiantes do Athletic. E aí estarão também as imagens de Puyol com a ikurriña, Xavi com a bandeira vermelha e branca e Eto’o com um cachecol bilbaíno. No lado oposto, obscuro, esconde-se que o protocolo e a segurança impediram que Piqué pudesse ir buscar o seu troféu com a bandeira independentista catalã.

Dizem que não há que misturar a política com o desporto. Mas o que os incomoda é que os povos basco e catalão, quando têm a oportunidade, são – desta vez, ainda por cima, juntos – um retrato que não é o oficial.

Iñaki IRIONDO

Fonte: Gara


Ver: «A TVE não transmitiu o hino na final da Copa do Rei para ocultar a ‘vaia’ monumental das bancadas», em kaosenlared.net (há quatro vídeos e várias gravações áudio)

Nota: alguns membros da ASEH tiveram oportunidade de ver em directo o que o 1.º, o 3.º e o 4.º vídeos apresentam; alguns amigos começaram a ligar-nos e a enviar-nos sms, “para vermos”, “que era uma vergonha”; mas a malta estava atenta; afinal de contas, era um Athletic-Barça; já agora, o Barça ganhou de forma inteiramente merecida.