segunda-feira, 25 de maio de 2009

O étnico e o racismo


Álvarez-Solís não desiste da distinção entre etnicismo e racismo, nem da reivindicação do “conteúdo vital positivo” do primeiro face ao “conteúdo negativo” do segundo. Contra o racismo metropolitano, de origem anglo-saxónica mas que tem lugar no Estado espanhol “sem a cultura e a inteligência britânicas”, o jornalista argumenta de maneira brilhante e apaixonada a favor de um internacionalismo que tenha em conta as nações reais, não tendo dúvidas em afirmar que, entre elas, Euskal Herria é “uma nação etnicamente indiscutível e viva”.

Numa discussão com bons amigos acerca do direito do povo basco à sua soberania política surge a questão do etnicismo como base radical e identificante da nação, como o seu mais característico significante. Arguo numa primeira aproximação que o etnicismo abarca os perfis mais distintivos do ser nacional, tais como as singularidades físicas, a língua, os elementos culturais que determinam o estilo de vida, as emoções profundas, o modo de enfrentar a existência, os hábitos, as preferências e tradições tecnológicas, a estrutura social, as crenças religiosas e muitas outras expressões vitais que singularizam um povo. A minha atitude de profundo respeito pelo étnico como base da realização humana é energicamente condenada por alguns convivas como uma manifestação racista. Esclareço, portanto, a minha atitude.

Antes de mais, a diferença primeira entre etnicismo e racismo é o conteúdo vital positivo do étnico e o conteúdo negativo do racismo. O etnicismo é um dado antropológico descritivo e o racismo é uma violência política, um posicionamento perverso que concebe a diferença das raças como base de uma ordenação da humanidade. O racismo é discriminatório de um modo categorial, estrutura a sociedade em pirâmide segundo a cor ou as suas misturas pouco apropriadas, de acordo com o critério da raça dominante. Atribui-se à cor uma capacidade diferenciadora que atinge o mais profundo do indivíduo portador. Há que fazer, não obstante, uma distinção entre o racismo antropologicamente puro e o racismo circunstancial de origem económica, que constitui uma derivação muito conjuntural.

Contrariamente ao racismo, o etnicismo é movido pelo puro propósito de considerar cada povo de acordo com os seus componentes sociais e as suas tradições políticas e morais, mas com idêntica dignidade humana perante a existência. Considerar assim os povos equivale a respeitá-los. Parece razoável pensar que o actual estado de confusão e de desassossego em que se encontra o mundo tem origem na retórica da globalização que em as todas suas manifestações, desde as económicas às genuinamente culturais, despojou da sua identidade um sem-número de nações e povos, que se viram destrutivamente penetrados pela cultura dominante, apresentada como paradigma do apogeu humano. Povos dramaticamente órfãos de si mesmos. Falar de transculturalidade ou da multiculturalidade como hoje se entende constitui uma falácia que persegue a destruição das seguranças étnicas, sempre assentes na posse de uma cultura própria. Mais ainda, com a redução à cultura dominante, o poder, potência ou potências que a possuem, persegue o estabelecimento íntimo do imperialismo mediante a fórmula inglesa que, durante o tempo da sua duração, instilou inclusive a prática do racismo metropolitano nas classes socialmente dominantes nos países submetidos à coroa inglesa. A Espanha é um exemplo ultrajante, embora sem a cultura e a inteligência britânicas, desse racismo metropolitano, reduzido aqui, é claro, a uma irrisória qualidade. Realmente a harmonia entre povos etnicamente distintos só se pode conseguir mediante um contacto mútuo da própria personalidade em condições de igualdade e de respeito. Deveríamos considerar esta fórmula de concórdia como uma espécie de universalismo que esteve a pontos de se consolidar no século XVIII europeu. Curiosamente este universalismo foi predicado por teólogos espanhóis do século XVI que perseguiram uma contra-reforma que escapasse também da desumanidade política dos reformistas luteranos, que sustentaram a teoria cruel de uma sociedade verticalista. Estes teólogos espanhóis, dos quais falou com lucidez o Sr. Barcia Trelles, foram marginalizados pela Coroa e em não poucos casos reduzidos ao silêncio, quando não condenados por heresia. Aquele liberalismo ideológico espanhol sofreu o mesmo infortúnio que todos os liberalismos que se iniciaram em Espanha e de cuja nómina no espiritual fala com adversa preocupação a Historia de los heterodoxos españoles, do Sr. Menéndez Pelayo.

Este confuso debate em que tantos simples misturam atropelada ou maliciosamente etnicidade e racismo deveria aprofundar-se em Euskadi, por radicar no esclarecimento do tema nada menos que o remédio para a chamada questão basca, à qual se costuma dar quarenta voltas a partir da formal óptica histórica, entretendo-se com frequência na análise das circunstâncias da história que obviam quase sempre a abordagem em profundidade que o étnico exige no povo euskaldun. A permanência do étnico em Euskadi perde nitidez em não poucas ocasiões por se colocar a tónica decisiva da luta pela liberdade basca em relatos de legalidades e acontecimentos com um valor até certo ponto epidérmico, ainda que na altura estas legalidades e estes acontecimentos possuam uma significação viva no quotidiano. Não nego, esclareço, o valor destes acontecimentos, uma vez que os povos sofrem dolorosamente na sua epiderme os agravos que recebem e que são os que os mobilizam para manter vivo o fogo da sua liberdade, mas seria bom que num plano vigorosamente ideológico se incidisse sobre o papel da etnicidade, que é a invariante que forma a musculatura e o sistema cardiovascular de toda a nação, neste caso da nação euskaldun; essa profundidade que não pode ser desvirtuada pela capacidade legal do seu adversário. Euskal Herria é uma nação etnicamente indiscutível e viva.

A saída do imperialismo, que culminou a fase superior do capitalismo, convertido já numa ditadura despida, há-de propor-se através do fortalecimento das nações como depositárias dos valores e das dimensões que as tornam plenamente existentes e vigorosas. Qualquer outro internacionalismo que não trilhe hoje o caminho das nações etnicamente definíveis está destinado inevitavelmente a ser engolido pelo internacionalismo autocrático. As relações de poder hão-de estabelecer-se agora na curta distância das nações reais, repletas de vigor étnico, se se quiser que a internacional financeira e a sua artilharia de acompanhamento não esmaguem a cidadania trabalhadora, crescentemente proletarizada pelo menos no que diz respeito à liberdade, democracia e possibilidades de criação. No seio desses povos fortalecidos pela sua etnicidade reside a força adequada que possibilita a acção popular com êxito. Saber de si mesmo, utilizar o vigor que daí emana e estabelecer os quadros legais correspondentes equivale a edificar uma sociedade incitante e com pleno sentido de responsabilidade. Há que superar certas retóricas sobre a racionalidade das economias de escala, manipuladas por um internacionalismo opulento e do lucro, que gera a desmedulação étnica de populações sob um poder repleto de alheamento e, portanto, carente de compromisso com os cidadãos. O mundo não pode continuar a ser um repertório de cifras desprovidas de calor vital e de uma racionalidade em cujo contexto os indivíduos não são os verdadeiros valores a conservar. Haverá que recorrer novamente a Joseph Stiglitz, nada suspeito de socialismo real, quando se refere aos poderes grandes e distantes sem humanidade dentro – isto é, surdos ao étnico e ao próximo – e escreve: “É revelador o mero facto de que o Fundo Monetário Internacional se centre nas variáveis financeiras e não nos salários reais, no desemprego, no PIB ou medidas mais amplas de bem-estar». Esta é a questão: etnicamente, a quem pertence o FMI?

Antonio ÁLVAREZ-SOLÍS
jornalista

Fonte: Gara