terça-feira, 26 de maio de 2009

Viver apesar deles


Nunca me tinha acontecido atribuir uma cor ao silêncio. Em alguns momentos cheguei a pensar que era tão escuro e negro como a solidão que atormenta o pensamento e se aprofunda nesse tempo terrível que começa quando se ouve a porta do calabouço a fechar-se. É o medo de não conhecer o instante seguinte, de se perder numa realidade sem horas, de procurar um fuga imaginária para esquecer que talvez, e sem o saber, se está a dormitar com a tortura. Nesses momentos o silêncio converte-se no túnel do vazio, da incomunicação e esse túnel, onde qualquer horror é possível, é sempre longo e negro.

Ao cabo de uma semana, na prisão, e sem querer aceitar que a legislação espanhola converteu o direito a promover uma plataforma e a concorrer a umas eleições num grave delito de “terrorismo”, descobri neste diário que o silêncio também se veste de branco e de solidariedade e se pode mostrar numa página vazia. Descrever o que senti naquele momento, ao enfrentar a ausência forçada de todas as minhas ideias, num artigo sem palavras, pertence a uma bagagem emocional que cada perseguido político leva consigo e que, do mesmo modo que as minhas companheiras e os meus companheiros presos, jamais poderei esquecer. Hoje só posso dizer obrigada. Obrigada por toda a solidariedade e apoio que dia após dia, de uma ou outra forma, Euskal Herria faz chegar aos mais de 700 presos políticos bascos, encarcerados nos Estados espanhol e francês.

Havia dias em que parecia impossível voltar a sentar-me em frente a um computador e escrever. Pensava que no dia em que me sentisse capaz de o fazer, empregaria as primeiras palavras para dizer que, além de fortaleza ideológica, o Colectivo de Presos Políticos Bascos possui um valor insubstituível, a sua qualidade humana, uma qualidade difícil de encontrar neste individualismo tão exasperante que nos rodeia. Desde que recuperei a liberdade, o meu único pensamento foi o de poder transmitir a todos e, em especial, às companheiras com que partilhei os meus dias de prisão, as palavras que Mikel Garaiondo me escreveu numa curta missiva para me dar coragem: “Ao cruzar as últimas portas e olhar para trás podes ver os mesmos muros mas do outro lado. Enquanto os kides, levá-los-ás sempre no coração. Olhes para onde olhares, levá-los-ás contigo para o resto da tua vida”.

Tenho a noção de que nestas primeiras linhas me dei a uma liberdade muito pouco ortodoxa com as regras jornalísticas do que deve ser um artigo de fundo. Mas não podia deixá-lo entre os ficheiros da minha intimidade. Estou convencida de que os sentimentos e as emoções também fazem parte da prática política. Sem esse património, corremos o perigo de que alguma parte da nossa luta fique por resolver.

É verdade que, neste regresso ao trabalho, o panorama político actual apresenta temas mais importantes que o subjectivismo com que alguém vive as suas próprias experiências. Existem problemas e questões de peso sobre as quais opinar, reflectir e debater para enfrentar o futuro e também o presente: a crise económica, o frentismo constitucionalista, a greve geral, as eleições europeias e a candidatura II-SP...

Contudo, por vezes o calendário detém a sua rotina e também a lógica com que marca o itinerário informativo. Existem factos que se aproximam da nossa sensibilidade e devolvem à actividade e à vida quotidiana o que noutro tempo, além de ser notícia de primeira página, feriu as nossas consciências e ensombrou os discursos hipócritas dos que se esforçam em converter o neofascismo em democracias modernas. Seguindo este pensamento jornalístico e a minha necessidade anímica de falar (por que não dizê-lo?), quis reiniciar a minha nova etapa recordando o julgamento que na próxima quinta-feira, 28 de Maio, se iniciará na Audiência Nacional contra catorze jovens alaveses detidos pela Guarda Civil em 2001, acusados e acusadas de “pertença a organização armada”. Quando o rosto de um dos processados, Unai Romano, arroxeado e deformado brutalmente pelos socos que lhe deram, apareceu na imprensa, impressionou toda a sociedade basca e abriu os olhos para o abismo desse horror incómodo e nunca reconhecido que é a tortura. Aquela imagem pungente foi então e é agora um ultraje aos direitos humanos, ao Estado de direito e aos princípios do sistema democrático e das suas instituições. De alguma forma, o rosto de Unai Romano não só demonstrou a verdade dos testemunhos de tortura realizados pelas suas companheiras e pelos seus companheiros de detenção, mas também a dor e a impunidade que se esconde por trás das mais de sete mil denúncias judiciais apresentadas por pessoas detidas e por presos e presas políticas bascas nos últimos trinta anos.

As jovens e os jovens alaveses, do mesmo modo que centenas de cidadãos de Euskal Herria processados pelos tribunais espanhóis, enfrentarão na quinta-feira um pedido de condenação que supera os seis anos, baseado em declarações arrancadas sob tortura. Uma circunstância grave que, de acordo com a ética política dos direitos humanos e da Constituição, deveria invalidar todos os fólios de qualquer processo onde surja a suspeita de ter havido recurso à tortura. Mas não é assim. A realidade mostra-nos constantemente que, neste país, existe uma pertinaz cegueira e irresponsabilidade política e social para reconhecer que nas instalações policiais estatais ou autonómicas o sistema de garantias dos detidos se reduz a uma teoria mal aprendida e ainda mais mal assumida.

Três anos depois de finalizar a II Guerra Mundial na Europa, a 10 de Dezembro de 1948, os aliados, reunidos na Assembleia Geral das Nações Unidas, criaram a Declaração Universal dos Direitos Humanos, um documento de conteúdo filosófico que garantia a dignidade dos direitos básicos das pessoas e que foi usado para pôr o selo de garantia e credibilidade nas novas estruturas políticas e nos valores democráticos face à barbárie dos fascismos da década de 30. No entanto, esses mesmos países permitiram a continuidade do franquismo e, como a história recente demonstrou, no subsolo das brilhantes democracias europeias os serviços secretos valeram-se de criminosos de guerra nazis, da sua informação e dos seus métodos para combater qualquer ideia ou alternativa que questionasse ou enfrentasse o sistema imperante, que não é outro senão o poder capitalista. A Transição espanhola repetiu o procedimento e o franquismo agachou-se nas actuações de estratos políticos e policiais que ainda perduram, sobretudo no que se refere à repressão dos direitos de Euskal Herria.

Esta explicação não é um testemunho de pessimismo. Trata-se simplesmente de situar a realidade e com ela chegar ao fundo da tragédia que representa a tortura e as consequências que dela derivam para a vida pessoal, o trabalho político, processos, julgamentos, sentenças e condenações que nunca teriam chegado a acontecer se a ética política respeitasse e funcionasse acatando os princípios básicos da democracia e da liberdade. Como afirma Nekane Jurado na sua análise do conflito nacional e social de Euskal Herria, em todas as crises económicas e conflitos, por cima das estruturas políticas e sociais pairam vigilantes as ideias e os valores de que o capitalismo necessita para defender e manter a sua hegemonia. Nesse controlo, o poder judicial e os corpos policiais jogam o papel que lhes compete, aplicando leis injustas e métodos tão “eficazes” para os seus fins como é o da repressão e, na sua face mais negra, a tortura.

Perante tanta impunidade, por vezes o silêncio da sociedade dói e muito. Com a rebeldia mistura-se a tristeza, e o fantasma da impotência aparece para desbaratar a esperança de alcançar o objectivo final. Contudo, mesmo enfrentando obstáculos, ainda devemos ser capazes de desbravar o caminho e seguir. A luta ideológica à volta da nossa identidade como povo e como classe pode ter sido e pode ser custosa, sobretudo no terreno humano, mas também pode ser entusiasmante, se nessa luta formos capazes de extrair da actual conjuntura os elementos necessários para construir e defender alternativas políticas para continuar – melhor antes que depois – no caminho que nos propusemos.

A cruel evidência da tortura, as denúncias, os pronunciamentos e a solidariedade, demonstrada pela maioria da sociedade de Euskal Herria com os processados no julgamento de dia 28, não conseguiram evitar que a Audiência Nacional os julgue, é certo, mas nunca se deve considerar um fracasso. Esse gesto, enquadrado num momento concreto da trajectória de luta deste povo, conseguiu pôr em evidência o carácter ilegítimo do julgamento, a prova mais contundente da razão face à indignidade e à barbárie da tortura.

Sobre a validade desses êxitos que às vezes parecem tão pequenos e para colocar um pouco de ordem entre as ideias e as palavras, gostaria de partilhar uns versos de Mario Benedetti, escritos nos seus primeiros anos de exílio e que sem dúvida expressam e sintetizam com precisão o leitmotiv deste texto: «La consigna es joderles el proyecto / vivir a pesar ellos / al margen de ellos o en medio ellos / convivir revivir sobrevivir vivir / con la paciencia que no tienen los flojos / pero que siempre han tenido los pueblos / qué proeza si arruináramos nuestra ruina y de paso liberáramos nuestra liberación».

Amparo Lasheras
jornalista

Fonte: Gara
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A jornalista e escritora Amparo Lasheras, porta-voz da plataforma eleitoral D3M para as eleições autonómicas de 1 de Março, foi detida em Gasteiz, com mais sete militantes abertzales, na madrugada de 23 de Janeiro. Foram postos em liberdade a 25 de Março, depois de convenientemente tachados de “terroristas”, de a lista que representavam ter sido posta fora de circulação e de as eleições para o Parlamento de Gasteiz terem decorrido de forma tão amanhadamente democrática, bem ao jeito da democracia à espanhola, como nos habituámos a conhecê-la.
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Foi mais uma operação fulgurante e estrondosa do juiZ, e correu mundo. A TSF, por exemplo, mencionou as detenções e o nome de Amparo e da plataforma a que dava voz logo na manhã de 23 de Janeiro - http://tsf.sapo.pt/PaginaInicial/Internacional/Interior.aspx?content_id=1076026. Pela nossa parte, jo ta ke, sem descanso!
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Mesmo sem a conhecermos pessoalmente, ganhámos-lhe estima e respeito através da sua colaboração nas páginas do Gara e dos seus comentários na Info7 Irratia. É um prazer e uma honra tê-la de volta a este convívio.
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Nota: não é nosso hábito apresentar artigos de fundo em dias sucessivos, mas a situação justifica-o. Não é só por se tratar de um pequeno ongietorri da ASEH à escrita de Amparo Lasheras (e à autora, naturalmente); é também pelo Unai, pelos outros torturados, pelos catorze processados.