domingo, 28 de junho de 2009

Construir uma estratégia para a mudança política


Nesta altura do ano, é tradicional fazer uma reflexão e/ou balanço da legislatura política iniciada em Setembro. Em qualquer caso, parece-me conveniente fazer uma abordagem ao ano que passou em termos políticos globais.

O processo político em Euskal Herria esteve condicionado pelos efeitos e pelas consequências de uma crise económico-financeira que afectou de forma horizontal um modelo neoliberal que nos era apresentado como “único” e sem alternativa. A globalização neoliberal foi criando uma casta económica mundial, com instrumentos de chantagem como o FMI e o BM, com poder e incidência concreta sobre os estados e as democracias parlamentares, estabelecendo uma ditadura do mercado sobre a sociedade que se foi convertendo no fascismo político do século XXI.

O crack do sistema financeiro e o seu alargamento à economia produtiva – recessão económica, desemprego, pobreza... – demonstra-nos a falácia do capitalismo neoliberal sobre a teoria dos ciclos económicos, da auto-regulação do mercado... Em suma, a mentira de um modelo baseado na acumulação de capital e poder em mãos privadas à custa da força de trabalho, da classe trabalhadora. Hoje mais que nunca, em Euskal Herria e no mundo inteiro, a luta contra o neoliberalismo é a luta por uma mudança política e social – luta de soberania política e económica como na Venezuela, na Bolívia, no Equador, no Brasil, na Nicarágua... – para ir configurando o socialismo do século XXI a partir de medidas económicas e sociais que, sem o jugo do mercado, permitam abordar a distribuição da riqueza e um desenvolvimento sustentável.

Nessa luta, Euskal Herria respondeu com confiança e determinação perante a hipocrisia de governos e patrões. A greve geral de 21 de Março foi um acto de consciência colectiva, de denúncia dos vampiros sociais que provocaram um enorme buraco económico no sistema financeiro enquanto acumulam enormes quantias de dinheiro nos paraísos fiscais que o sistema capitalista mundial protege para garantir os interesses da “iniciativa privada”.

Neste balanço sintético, é preciso salientar que a greve geral impulsionada pelo sindicalismo abertzale, com o apoio da esquerda independentista, trouxe uma lufada de ar fresco ao bloqueado panorama político basco. A convocatória da greve foi uma oportunidade para ver onde estão e quem são as forças da mudança política e social em Euskal Herria e quem são os que, pelo contrário, representam o continuísmo tanto político como de modelo económico e social. Desta forma, cada qual se retratou em termos políticos e de classe.

Quanto ao mais, numa altura em que passaram quase dois anos desde a ruptura do último processo de negociação, o bloqueio persiste no braço de ferro Euskal Herria/estado(s) para determinar as bases de uma nova etapa política para o nosso povo. O esgotamento dos instrumentos de assimilação ainda vigentes, a falta de estabilidade política provocada pela permanente obsessão de Madrid e Paris em negar a nossa realidade nacional e o legítimo direito a decidir o nosso futuro, continua a ser a chave desse bloqueio.

Os constitucionalistas, agora com os “pactos de estado” em Gasteiz e Iruñea, não possuem uma correlação de forças, nem social para propor unilateralmente reformas estatutárias que estabilizem o instável modelo territorial espanhol. Os pactos antinatura entre PP e PSOE, com as suas respectivas terminais em territórios bascos, são a prova do “problema de estado” e reflexo da importância da fase política em que nos encontramos. A instrumentalização do poder judicial até limites insustentáveis para neutralizar a esquerda abertzale e a usurpação antidemocrática das diferentes instituições constituíram o último elo da corrente numa estratégia de Estado que, embora pretenda esquivar-se às raízes do conflito político, debilitando a massa crítica soberanista, não conseguirá dissolver as causas que fazem que este povo permaneça organizado e em luta pelos seus direitos nacionais e democráticos.

Perante esta estratégia, o espaço soberanista-independentista permanece atomizado em termos organizativos e neutralizado politicamente para incidir nesse bloqueio global. Mantemos um nível de resistência mas sem incentivar forças e propostas que permitam, tanto individual como colectivamente, libertar e organizar energias ao serviço de uma estratégia de libertação nacional e social eficaz. Após trinta anos numa batalha para evitar essa assimilação-integração num modelo territorial espanhol negador do sujeito nacional basco, chegou o momento de apresentar os alicerces e os instrumentos que nos permitam partir para outra fase política. O independentismo tem força e sociedade, tem militância e compromisso e tem alternativa política para se constituir num espaço determinante na superação do impasse actual e no avanço para um cenário de paz e democracia em Euskal Herria.

Neste braço de ferro de fundo, a legislatura trouxe-nos um claro retrocesso do PNV na sua posição político-institucional. Depois da amortização dos activos realizada pela sua própria direcção – plano Ibarretxe e consulta – que teriam possibilitado ao PNV adquirir centralidade política nesta fase do processo, a deriva do partido começa a afectar gravemente o seu futuro político. Nesta fase pós-Ibarretxe, sem líderes que representem adequadamente as duas “almas” do partido, com a perda da gestão autonómica e, especialmente, com uma desorientação em termos de posicionamento e aposta política face à liderança adquirida pelo PSE-EE no discurso “transversalista”, os jeltzales não possuem margens para dar curso à sua histórica e, claro, bem trabalhada ambiguidade. A capacidade de adaptação do PNV choca nesta conjuntura com duas correntes –autonomismo reformado liderado pelo PSE-EE e independentismo com a esquerda abertzale como eixo central – que delimitam estruturalmente o seu lugar político a médio prazo.

Estas variantes globais, unidas às correntes estruturais que atravessam a nossa sociedade foram sujeitas à análise e reflexão no seio da esquerda abertzale. O compromisso com Euskal Herria e os seus direitos, com o olhar posto nos nossos objectivos estratégicos, está-nos a possibilitar a formação progressiva da nossa aposta política, colocando-a ao serviço de uma sociedade basca que quer ganhar a mudança, que quer ganhar um cenário de reconhecimento e direitos, de paz e coesão social com base no respeito pela nação basca.

Como dizíamos na reflexão que a esquerda abertzale tornou pública no dia 16 de Março deste ano: “as independentistas e os independentistas e socialistas bascos têm um desafio importante pela frente: construir uma estratégia eficaz para alcançar os nossos objectivos tácticos e alimentar a proposta estratégica, isto é, uma estratégia eficaz para alcançar um cenário democrático, que abra as portas à possibilidade da materialização de todos os projectos políticos, e reforce o projecto independentista e socialista”.

Em complemento a essa reflexão aberta, a esquerda abertzale recuperou a sua posição no tabuleiro político dando um golpe contundente às pretensões de âmbitos políticos e mediáticos (de Euskal Herria e fundamentalmente do Estado) de a “substituir” pelo Aralar, no estilo utilizado há trinta anos com a Euskadiko Ezkerra. As eleições europeias demonstraram que o retrato falsificado das autonómicas era um mero engano e que, quando a esquerda abertzale tem a possibilidade de voto “legal” – mesmo que em condições-limite e sem marca própria –, o seu peso e a sua liderança política no espaço soberanista-independentista são inquestionáveis.

Neste sentido, o resultado das europeias assentou num panorama com quatro grandes espaços político-ideológicos e debilitou as opções “charneira”: o unionismo, com PP-UPN-UMP por um lado e PSE-PSN-PSF por outro; no espaço abertzale, o PNV com alguns sucedâneos e a esquerda independentista. Quatro espaços para duas referências estratégicas hoje em dia bem definidas: autonomismo e independentismo.

Em qualquer caso, o ano que passou serviu para constatar mais uma vez que existem condições políticas suficientes para a mudança política em termos nacionais e sociais. Assim sendo, também é forçoso constatar que este ano também não soubemos materializar essa mudança e, assim, superar as dolorosas consequências do conflito político existente.

A próxima legislatura deve permitir pôr em marcha uma verdadeira ofensiva política por parte dos independentistas de esquerda em Euskal Herria. Tendo por base a confiança nas nossas forças, a legislatura 2009-2010 deve assentar numa dinâmica ofensiva que procure a junção de forças soberanistas e independentistas, o compromisso da comunidade internacional e a reabertura de um processo de diálogo e negociação que instale o país num outro cenário.

A esquerda abertzale trouxe o processo ao limiar de uma mudança possível. Agora temos de construir uma estratégia eficaz para ganhar a mudança e encaminhar o nosso projecto independentista e socialista.

Arnaldo OTEGI

Fonte: Gara