“Tropelia: atropelo ou acto violento cometido, geralmente, por quem abusa do seu poder”. (DRAE). Entre as grandes tropelias que este povo sofreu durante as últimas décadas não é a menor delas o encerramento do diário Egin e da Egin Irratia, faz agora dez anos; uma tropelia que abriu caminho, como acaba de me lembrar Xabier Salutregi, numa breve conversa que tivemos, com ele já na rua, depois de quase oito meses de intolerável prisão; que abriu caminho, digo, a uma série prolongada de outras tropelias auspiciadas por esse juiz Garzón, cuja figura aparece desde há algum tempo grotescamente deformada pela insensata pretensão de aparecer nos foros internacionais pouco menos que como um apóstolo da justiça democrática e grande defensor dos direitos humanos.
Nesta hora, eu não posso deixar de recordar, contudo, e sobretudo, o triste papel que desempenhou o PNV, ou pelo menos alguns dos seus dirigentes, na preparação daquele facto em que culminava um processo de asfixia que teve já um gravíssimo episódio no assalto e na devastação que sofreu o Egin cinco anos antes (Dezembro de 1993) por parte da Ertzaintza. Eu acabava de escrever um artigo acusando a terrível situação de acosso que sofria o periódico, por exemplo, o boicote da publicidade institucional e uma mensagem horrenda do Sr. Atutxa. No dia 3 de Dezembro apareceu este artigo – «Eu acuso» –, que saiu encabeçado por mim da seguinte maneira: “Os acontecimentos precipitam-se nestes dias. Apenas acabado este artigo, agentes da Ertzaintza, num grande contingente, irromperam nas sedes do Egin em Hernani e Bilbau, que foram invadidas durante muitas horas – trabalhadores presentes tiveram a impressão de que os gabinetes eram ‘saqueados’ – em aplicação de um mandamento da Audiência Nacional. Tratando-se desta instituição (...) não posso evitar a fervente suspeita de que esta invasão forma parte (...) da ‘solução final’ de que este periódico está a ser objecto”. Efectivamente, como dissemos, cinco anos depois proceder-se-ia à grande violência do seu encerramento, que se tornou, como não podia deixar de ser, definitivo.
No que se refere à menção que fiz do senhor Atutxa, naquele artigo denunciei que se produziu a instâncias deste senhor a suspensão da publicidade institucional a que acabo de me referir, e que o mesmo senhor, como escrevi naquele mesmo artigo, com expressão alucinada e ameaçadora, nos comunicou desde a televisão a sua ideia de que quem se faz anunciar no Egin “financia desse modo as balas que se alojaram no corpo do sargento-mor Goikoetxea” (um atentado recente da ETA). Quanto ao resto, é certo que a medida foi tomada “com o beneplácito ou a indiferença da maior parte dos escritores, artistas, jornalistas e intelectuais em geral, (que) assistiram a essa prolongada acção ilegal realizada desde o Poder Político”.
Agora penso que se pode considerar que então se começou – e então, maldito seja você, senhor Atutxa! – a consolidar a ideia de um “ambiente” da ETA (um “ambiente” culpado), que iria abarcando com os anos uma boa parte da população de Euskal Herria; em geral, todas as pessoas que participam da ideia de que é justa a reclamação, por parte dos povos, do direito a decidir sobre o seu próprio destino. A partir de então, um mero leitor de um jornal poderia ser considerado como pertencente a uma organização armada e seu colaborador, porque com a sua contribuição ajudaria ao financiamento do seu armamento (é irónico o último episódio desta ideologia delirante: a detenção de empresários, acusados de financiar a ETA pela presunção de que não se tenham negado a pagar um chamado “imposto revolucionário” reclamado por aquela organização).
Se não o estivéssemos a ver, não acreditávamos, mas aquelas ideias frutificaram. Garzón amadureceu-as, chegando a considerar a ETA como uma importantíssima e complexa organização múltipla e interdisciplinar. É um modo de se negar a admitir a existência de um problema político de dimensão popular. Assim, uma boa parte dos cidadãos pode ser acusada de pertencer à ETA.
Eu procurei definir esta prática renovada da repressão como um “ambientalismo”, que seria uma noção que transcenderia – iria mais além – do mero “síndrome de Antígona”, segundo o qual os irmãos e demais parentes dos militantes se vêem a si mesmos participantes dos castigos que se lhes infligem. A “dispersão” dos presos nas prisões distantes forma parte deste síndrome e, numa forma mais grave, o facto de que na Palestina o exército israelita bombardeie uma casa porque num dos seus apartamentos viveu ou vive um patriota árabe.
Nos últimos anos, enfim, tudo foi para pior; e já é hora de declarar definitivamente insuportável a situação em que vivemos; e de, efectivamente, não a suportar, reclamando – para já! – a libertação de todas as pessoas encarceradas sob o império desta sinistra filosofia penal que acabamos de definir sumariamente, e com alguma precisão maior noutras ocasiões.
Alfonso SASTRE
Fonte: Gara