terça-feira, 8 de julho de 2008

«Depois 30 anos, continuamos num Estado policial com ‘deficit’ democrático»


Iñaki GOIOAGA, advogado dos acusados no sumário 33/01, entrevistado por Manex ALTUNA

O julgamento contra o movimento pró-amnistia encontra-se à espera de que a Audiência Nacional se pronuncie, após dois meses de sessões. A acusação pede para 24 cidadãos bascos penas que oscilam entre os 10 e os 13 anos de prisão, ainda que Goioaga denuncie que não existem provas para sustentar as acusações.

A renúncia à defesa jurídica dos processados marcou o sumário 33/01.

A decisão adoptada pelos acusados esteve condicionada, desde o início, pela ausência de imputações concretas a cada um deles, quando é necessário, no momento de enfrentar um julgamento, saber que acusação pende sobre cada pessoa. Há que ter em conta que o julgamento decorreu num tribunal especial como a Audiência Nacional e que a acusação se baseia em relatórios policiais, precisamente num contexto em que tanto a Audiência Nacional como as Forças de Segurança do Estado foram objecto de denúncia permanente por violação de direitos fundamentais por parte do movimento pró-amnistia. Um elemento mais nas poucas garantias que o tribunal oferece. Para além disso, as Gestoras e a Askatasuna denunciaram em repetidas ocasiões que a sua natureza provém de uma situação de deficit democrático, pelo que, partindo dessa perspectiva, era lógico e coerente denunciar que não se iria realizar um julgamento justo e que, subjacente a ele, existiria um impulso político para criminalizar as suas actividades.

Que apreciação faz do desenrolar do julgamento?

O mais importante foi os imputados terem posto em evidência que, depois de 30 anos da chamada transição e suposta reforma política, continuamos a estar num Estado policial que carece de um carácter democrático real.

Acredita que essa atitude tenha incomodado a judicatura espanhola?

É evidente que sim. Pôde-se comprovar, sobretudo, na atitude do magistrado da acusação. Manifestou durante todas as sessões uma grande hostilidade pessoal relativamente a alguns dos imputados, e a própria presidente do tribunal teve que lhe chamar a atenção, pela forma como se lhes dirigia, algo que é impensável num processo com todas as garantias. Além disso, na sua exposição final defendeu continuamente a legalidade e o Estado de Direito das denúncias dos acusados. Em resposta às suas palavras, haveria que dizer-lhe que não se trata da defesa da legalidade, mas antes de que a legalidade esteja imersa num sistema de garantias que reflicta a existência de um Estado de Direito.

Que quer dizer quando fala de falta de garantias?

O julgamento arrancou com umas declarações do procurador geral da Audiência Nacional segundo as quais haveria uma grande quantidade de material probatório para conceber uma condenação dos imputados. Todavia, nas sessões vimos que tudo o que apresentaram se baseia num relatório policial. De acordo com a legislação espanhola e, concretamente, a Lei de Procedimento Criminal, o valor do relatório policial seria o de um atestado, uma vez que se trata de conjecturas, suposições e imputações baseadas na especulação policial que não estão provadas nem concretizadas.

Contudo, as acusações e petições de pena são graves.

As testemunhas que a defesa apresentou mostraram que a actividade do movimento pró-amnistia é muito diferente do que a acusação quis expor. O magistrado da acusação, na sua exposição final, afirmou que as actividades das Gestoras e da Askatasuna tinham sido descobertas. Contudo, aquilo que se tentou fazer foi ocultar as suas verdadeiras actividades, como são as denúncias das violações de direitos dos presos e refugiados, e o corte das liberdades democráticas no Estado espanhol. Procuraram difamar e ocultar toda esta questão.

O Ministério Público e a AVT retiraram as acusações contra três processados – Jorge Arredondo, Mitxel Sarasketa e Maitane Méndez – e apresentaram-no como prova das garantias jurídicas.

Creio que deveriam ter retirado as acusações contra todos. Mas o objectivo não é a penalização dos imputados, antes a ilegalização do trabalho colectivo que se pretende criminalizar, porque não se admite que haja um trabalho de denúncia de violações de direitos. É aí que reside a perversão deste procedimento penal. Tudo o resto consiste em criar uma forma para exibir, mas o correcto teria sido não dirigir nenhuma acção penal contra eles. Estiveram acusados com uma série de obrigações durante sete anos e tiveram que assistir ao julgamento. Aí volta a dar-se a quebra do sistema de garantias, já que todas as provas da acusação se baseiam num relatório policial.

A defesa denunciou também a falta de provas nas que sustentam as acusações.

O delito da “integração em grupo armado” é uma chiclete que se estica e se alarga segundo os impulsos ou interesses políticos. O absurdo chega a tal ponto que, durante o julgamento, não sabíamos se se estava a julgar os imputados, as actividades das organizações, a questão associativa ou as defesas, porque as exposições mais duras foram contra os advogados. Como careciam de um elemento probatório fundamental, procuraram perverter as actividades das Gestoras e da Askatasuna. Conceitos como solidariedade com presos e refugiados, convertem-no em coordenação das prisões, e assistência jurídica e humanitária a refugiados, em ajuda a foragidos que estão na clandestinidade.

Também lhes imputam acusações como financiar a ETA e marcar objectivos.

É absurdo. Criminalizam actividades empresariais normais e correntes, mas nem sequer se apresenta um perito económico na Sala. Não há nenhuma prova contra ninguém nem nenhum facto concreto sobre tal. Com a dinâmica da marcação acontece mais do mesmo. Faz-se referência a uma manifestação que ocorreu no período da trégua de Lizarra-Garazi [acusam Aitor Jugo de organizar uma manifestação a favor dos presos políticos, em Durango] e o que se faz é alterar as datas aproximando-as do atentado contra um vereador da localidade, embora não esteja sequer provado que essa pessoa tivesse participado na mobilização. Outro elemento da perversão que procuraram é a interpretação que se faz no relatório policial do que é limpar uma sede – remover documentos [Ixone Urzelai está acusada de remover documentos porque numa escuta telefónica fala em passar pela sede das Gestoras em Gasteiz, para a limpar].

Inclusive, são acusados de coordenar a kale borroka quando a Segi já foi condenada por tal.

A abordagem feita pela acusação perante a ausência real de provas foi a de tentar conspurcar tudo. Desenvolvem a questão da kale borroka [violência urbana], o relatório pericial diz que as Gestoras não têm nada a ver com o tema, mas a prova mantém-se. Esse tipo de histórias tem saída em Madrid e, embora seja inútil, por não terem nenhuma relação, tentam perverter as actividades.

Um organismo com o prestígio da Associação de Advogados Europeus Democratas (AED) denunciou também que no sumário 33/01 foi violado o direito à defesa.

O objectivo fundamental é criminalizar qualquer acção de solidariedade com os presos e refugiados políticos bascos, e entre eles está o direito à defesa. É curioso que haja um advogado imputado neste processo [em referência a Julen Arzuaga] por ter participado em julgamentos de extradição. O elemento incriminatório que utilizam é um documento confiscado a uma pessoa, cinco anos antes de se ter licenciado como advogado. Além disso, não está provado que seja da ETA porque não tem nenhuma assinatura, nem se leva ao julgamento a pessoa que o confiscou. Essa foi a tónica geral ao longo de todo o julgamento.

Depararam com muitas dificuldades para poder preparar a defesa?

Sim, tanto numa perspectiva histórico-ideológica como de conceitos jurídicos e linguísticos, com traduções como ‘comensal’ para mahaikide [porta-voz], ‘sostenes’ [apoios] para txostenes [txostenak: relatórios] ou ‘auto judicial’ para ‘automóvel’. E, para o Ministério Público e o tribunal, não existe um conflito político, presos e refugiados políticos ou deficit democrático. Tudo isto implica que qualquer acção de solidariedade ou denúncia do Estado de Direito se situe no contexto da luta antiterrorista e se criminalize. O interesse do Estado prevalece sobre as garantias. Além do mais, todas as provas se sustentam em suposições de polícias que, por artes mágicas, se convertem em peritos, secretários judiciais e até intérpretes e tradutores. A partir de agora, se existe uma sentença condenatória, bastará um relatório policial com ausência de julgamento e qualquer sistema de garantias. Assim, chega-se à conclusão de que ainda estamos num Estado policial e de que não se realizou a passagem para um Estado de Direito democrático face a Euskal Herria.

Os processados denunciaram em repetidas ocasiões que a condenação está escrita de antemão. A apelação do magistrado e da acusação particular às sentenças do sumário 18/98 e do caso «Jarrai-Haika-Segi» para reclamar a sua condenação podem entender-se como uma prova disso?

A atitude das acusações durante este julgamento também evidencia a existência desse deficit democrático do Estado de Direito. Limitaram-se a dizer que, como já temos a sentença do 18/98 e do «Jarrai-Haika-Segi», mais o relatório policial, não faz falta provar nada, porque já está tudo provado. Essa seria a tese defendida pelo magistrado. Aí se volta a manifestar a evidência de um deficit democrático no Estado de Direito, que é a base da existência das Gestoras e da Askatasuna, uma vez que são organismos populares que não têm vocação de permanência no tempo. Na medida em que se estabeleça a solução dialogada e democrática do conflito, tendem a desaparecer. Contudo, num momento em que há uma aposta numa saída policial e repressiva, o movimento pró-amnistia incomoda.

Entende que pretendem tirar do meio a “testemunha” da repressão?

A actividade do movimento pró-amnistia está marcada pela violência de Estado, e não pela ETA. Durante os últimos 30 anos dedicou-se à denúncia da tortura, da guerra suja, da dispersão, das condições nas prisões... De algum modo, tirou a máscara democrática ao Estado espanhol e não interessa que isso se continue a manter assim, e encontraram a desculpa da rede da ETA.

Esperam uma sentença dura?

A preocupação principal, embora isso também preocupe, vai mais além das penas que poderiam recair sobre cada um dos acusados. É que uma condenação significaria fechar a porta a uma saída democrática ao conflito político, como sempre defendeu o movimento pró-amnistia. Ao produzir-se a condenação, as margens de impunidade do Estado aumentariam, e há ainda a perversão que implica criminalizar actividades de solidariedade com os presos e perseguidos políticos. Marcará também os processos que vêm a seguir, a Udalbiltza, o Batasuna..., já que vão deixar ao Estado as mãos livres para fazer o que quiser.
Fonte: Gara