terça-feira, 15 de julho de 2008

O castelhano, o euskara e Matrix

[A propósito do «Manifesto pela língua comum» («Manifiesto por la lengua común»), lançado em Junho em Madrid, e da preocupação nele veiculada pela actual situação da língua castelhana (o castelhano acossado!?) no “democrático” [sic] Estado espanhol, assim referido pelos proponentes logo na premissa primeira. Ora bem, ora bem...
Há milhares e milhares de ligações para o dito «Manifiesto...»; e existem algumas respostas a preceito.]


A noite passada não consegui descansar nada; uma ideia que andava às voltas na minha cabeça não me deixava dormir com tranquilidade. Por fim, quando o despertador tocou, levantei-me da cama e, antes de ir tomar duche, liguei o rádio. Tinha temores fundados de que o meu tranquilo mundo tivesse desabado, mas não, aparentemente as coisas continuavam como sempre; em onda média cinco das emissoras transmitiam em castelhano, enquanto apenas uma delas ainda se aferrava ao arcaico basco. Na frequência modulada podia-se escutar mais alguma em euskara, mas felizmente o castelhano mantinha a sua situação predominante e poderia dizer-se que ganhava por goleada. Quando, convenientemente arranjado e com o pequeno-almoço tomado, saí à rua, cumpri o ritual diário de me dirigir até ao quiosque em que habitualmente compro o jornal. Por curiosidade e também, por que não confessá-lo, porque ainda não me tinha passado de todo a inquietação que se havia apoderado da minha mente, verifiquei em que idioma estavam redigidos os jornais que o quiosque tinha expostos para venda. Sim, é verdade, havia um no perturbador idioma basco, mas a imensa maioria estava escrita em castelhano. E o mesmo se podia dizer das revistas, com excepção de alguma em inglês. Ao ver isto, sorri com satisfação, somos um país culto que aprecia a riqueza das diferentes línguas que há no mundo. Mais descansado, dirigi-me ao escritório da administração em que trabalho. Ali todos os meus colegas se relacionam comigo em castelhano, inclusive alguns que (sei-o eu, embora eles, envergonhados pelo carácter exclusivo dessa capacidade, não o reconheçam abertamente) falam perfeitamente o euskara. É certo que algumas das pessoas que lidam connosco desejam ser atendidas no idioma vernáculo, e assim o fazemos, coitados – no fundo é enternecedor que se agarrem a uma velharia –, mas na maioria são gente ponderada, que comunica connosco em castelhano. Como deve ser. Durante uma pausa no trabalho dei uma vista de olhos ao cartaz cinematográfico, já que ando com ideias de ir ver um filme. Das 27 salas que há na minha cidade, em 26 os filmes são emitidos em castelhano; só numa em euskara. Que baile levam os euskaldunes!, diz-me um colega de trabalho um pouco fútil, mas, como eu lhe digo, ninguém os impede de ir ver qualquer um dos outros filmes. Ao fim e ao cabo, supõe-se que sabem castelhano; pelo menos, segundo a Constituição, o seu conhecimento é obrigatório. À tarde, quando regresso ao calor do lar, cansado da dura jornada laboral, acendo o televisor. O novo sistema TDT oferece-me mais de vinte canais gratuitos e o satélite multiplica, embora seja a pagar, essas opções. Percorro com inquietação todos os canais que, graças à maravilhosa invenção do zapping, se encontram à minha disposição e, para minha tranquilidade, só um deles transmite em euskara; o resto emite num castelhano perfeitamente reconhecível e inteligível. Por fim, volto-me a deitar, com o corpo e a mente já apaziguados de todo, graças às verificações que fui efectuando ao longo do dia. Mas, de repente, o desassossego retorna, dou-me conta de que algo está mal. Se um eminente grupo de intelectuais elaborou um manifesto em defesa do castelhano, isso fica a dever-se ao facto de que, efectivamente, o castelhano está em perigo. Então, por que não vislumbrei esse perigo, apesar de passado todo o dia atento? Pensei bastante nisso e acabei por perceber. Na realidade, vivo numa sociedade em que o castelhano desapareceu e o euskara se impôs em todos os âmbitos, mas, do mesmo modo que no filme Matrix, em que se submeteram os cidadãos a uma realidade virtual que os mantinha na ignorância, alguma mão negra (e, claro, de fala basca) introduziu-me numa realidade virtual na qual se produz a ficção de que o castelhano é o idioma preponderante e dominante, para que não me passe pela cabeça revoltar-me. Todavia, comigo estão completamente enganados, pois consegui desmascarar esse sinistro Matrix euskaldun e, no final, compreendi que a verdadeira realidade é a que afirmam os assinantes do manifesto: o castelhano está em perigo e os cidadãos de bem devem salvá-lo. Amanhã, mal acorde, a primeira coisa que vou fazer será, precisamente, assiná-lo.

José Javier ABASOLO

Fonte: Nabarralde