«O orgulho de ser, eis a questão, Sr. Anasagasti»
por Amparo LASHERAS
Comecei a escrever este artigo depois de escutar, num desses debates que vão e vêm de uma rádio para outra, a ideia de que, no Verão, sobram as reivindicações da esquerda abertzale. No início, a intenção do artigo foi a de defender o direito desta formação a empreender a sua política em qualquer estação do ano.
A partir deste ponto, senhor Anasagasti, a leitura de algumas frases do seu artigo, publicado na sexta-feira num diário de Gipuzkoa, fizeram-me mudar o rumo do meu artigo e dedicar-lhe a si o resto da minha reflexão, porque creio que a sua bagagem política é bastante limitada e o senhor necessita de perceber algumas questões importantes sobre a evolução da esquerda, a coerência ideológica, a militância responsável e a dignidade política, algo que o senhor desconhece, a julgar pelo que escreve e pelas opiniões tão pouco elegantes que verte no seu texto sobre duas pessoas, Tasio Erkizia e Periko Solabarria. Estes militantes da esquerda abertzale devotaram a sua vida à defesa dos direitos de Euskal Herria e da classe trabalhadora e, enquanto o senhor residia na Venezuela à espera que Franco morresse para regressar pela mão do PNV, eles, aqui, numa Euskal Herria demasiado dorida, sofriam a repressão e a tortura franquista para conseguir a liberdade e as condições que a si lhe permitiram dedicar-se à política durante trinta anos, que são muitos anos.
Olhe, senhor Anasagasti, na verdade o seu artigo também não constitui nenhuma novidade jornalística. O facto de se lançar augúrios de tragédia sobre o futuro da esquerda abertzale nos meios de comunicação e em qualquer declaração política que se preze converteu-se numa trivialidade. Todos, jornalistas e políticos, incluindo o senhor, estão empenhados em tratar da nossa extinção e em representar perante a sociedade um cenário em que essa extinção é já um facto consumado. Para conseguir os seus objectivos e tornar invisível a proposta da esquerda abertzale para um novo marco democrático, tudo vale. Não importa a qualidade democrática do caminho a seguir. Qualquer arma judicial, policial, legislativa ou mediática pode ser válida, caso contribua para expulsar da cena política o independentismo de esquerda. E se essas medidas, decretadas por Madrid e apoiadas pelo seu partido, ajudam a criar as circunstâncias propícias para desmoralizar as bases da esquerda abertzale, os objectivos estão mais do que alcançados.
Em todos os discursos dos dirigentes do PSOE, do PP e dos seus companheiros de partido e, em especial, nas declarações do ministro espanhol do Interior, parece-me reconhecer uma intencionalidade subliminar de prepotência e vitória política, de condescendência ganhadora e uma falta de rigor quase infantil no momento de analisar a militância, o compromisso, a ideologia e a força da luta política da esquerda abertzale. Quem lança estas mensagens e as escreve, como o senhor, em artigos tão pouco politicamente substanciosos, responde a uma propaganda de acosso e derrube perfeitamente estudada. Fazem-no com base no atrevimento e na ousadia que traz consigo a soberba e a ignorância, atitudes que talvez lhes limite a visão política e lhes faça crer que a sua advertência calará no ânimo dos militantes abertzales, e que estes acabarão por admitir a possibilidade de, no fundo, o Governo espanhol e o PNV estarem na via certa. Porque já se sabe que nada há de mais benéfico para o inimigo que um militante sem esperança. Para o provar, só tem que analisar a perda de votos nacionalistas nas últimas eleições.
Para o caso de não o saber, digo-lhe que, nas últimas décadas, os novos desafios da esquerda geraram numerosos debates em torno da militância política e da sua importância na luta por uma mudança social que devolva aos povos os direitos, a liberdade e a capacidade de decisão que o neoliberalismo actual tentou apagar do pensamento político, através do desenvolvimento e implementação de um individualismo selvagem e consumista. Desde Marta Harnecker até Fernández Huidobro, ex-dirigente Tupamaro, passando por políticos e ideólogos marxistas, social-democratas, anarquistas ou liberais, todos teorizaram, a partir de perspectivas muito diferentes, sobre o protagonismo e o compromisso da militância, seja na estrutura de um partido, de um movimento popular ou noutros campos sociais. Contudo, apesar dos diversos conceitos que defendem e por cima de qualquer teoria, existe um princípio fundamental, simples e inequívoco, que não necessita de muita teorização e sem o qual a militância e o compromisso ideológico se tornam frágeis e mutáveis. Estou-lhe a falar desse sentimento de orgulho e confiança que se mantém nas ideias que estruturam o nosso pensamento e a nossa vida, com as quais analisamos a realidade, racionalizamos as respostas e sustentamos a nossa luta. Esse orgulho de ser o que somos e a confiança no que chegaremos a ser são, quiçá, o elemento inexplicável que faz avançar a força e a exigência de luta para alcançar os objectivos e tornar possível o que o sistema nos mostra como impossível, e que responde ao que Tomás Moro definiu como utopia, o que Marta Harnecker teorizou no seu livro A Esquerda no Limiar do Século XXI e que eu, no meu modesto ideário pessoal, me explico a mim mesma como a defesa de um idealismo possível. Reconheço que este posicionamento será difícil de entender para quem, como o senhor, senhor Anasagasti, converteu a política, a democracia e os direitos colectivos e individuais num campo de negócio e poder, defendido pela força da repressão.
A decisão da Audiência Nacional de processar 30 militantes da esquerda abertzale no sumário de ilegalização do EHAK [Partido Comunista das Terras Bascas], cuja denúncia lhe causa tanta hilaridade, constitui, como todos os processamentos de militantes da esquerda abertzale, uma acção de perseguição política, digna de qualquer governo neofascista, e isso, o senhor e o seu partido sabem-no muito bem. Outra coisa é que se calem e tentem sacar benefícios desse silêncio. É certo, senhor Anasagasti, que os acordos entre o PP e o PSOE, a submissão do PNV ao marco constitucional espanhol e a docilidade com que o tripartido de Gasteiz está a acolher a proibição da consulta promovida por Ibarretxe, juntamente com as mensagens que durante esta semana se prodigalizaram na imprensa, tentando vender uma sensação de vitória policial e judicial, conseguiram que a dureza da realidade que a esquerda abertzale está a viver se agudize, num Verão em que, ao que parece, só é lícito tomar sol. Também é certo que no novo curso político a esquerda abertzale terá que trabalhar duramente e articular as respostas adequadas para impedir que vocês, o PNV, negoceiem com o PSOE uma reforma estatutária. Enfrentar o momento com uma estratégia de luta política, num contexto excessivamente hostil, onde o reconhecimento de Euskal Herria, a independência e o socialismo estão excluídos e criminalizados, vai ser uma tarefa bastante árdua, e vai ser necessário um compromisso muito valente por parte da militância da esquerda abertzale.
Contudo, senhor Anasagasti, por mais que o senhor não o possa entender, é agora, neste momento de vertigem, quando a solidez das ideias pode e deve sustentar o projecto de futuro. O orgulho de ser o que somos e a confiança no que chegaremos a ser converter-se-ão na força e também no sorriso aberto de cada um dos homens e das mulheres da esquerda abertzale, sejam jovens ou veneráveis, estejam na prisão, livres ou compareçam nas conferências de imprensa zurzidos por artigos tão banais e grosseiros como o seu.
Na realidade, senhor Anasagasti, devo confessar-lhe que, no que respeita à coerência política, à ética humana, ao valor das ideias e ao orgulho de as defender, neste artigo não descubro nada de novo. Disseram-no os gregos e durante séculos teorizou-se sobre isso. Foi Shakespeare no século XVII quem o expôs como dilema, com a paixão do drama e o segredo da poesia. “Ser ou não ser, eis a questão”. Sim, senhor Anasagasti. O senhor e os seus companheiros de partido, não sei, mas o que lhe posso assegurar, sim, é que a esquerda abertzale, porque é, continuará em Euskal Herria, lutando por aquilo em que acredita.
Fonte: Gara