Os assinantes do artigo partem de uma constatação geral, a deterioração do Estado de Direito no Estado espanhol, para se adentrarem num dos seus desenvolvimentos particulares: a caça às bruxas contra a “proximidade ideológica” à esquerda abertzale levada a cabo pela Audiência Nacional, com o juiz Baltasar Garzón à cabeça, emulando a perseguição que a Santa Inquisição moveu aos hereges.
Temos assistido nestes últimos anos à deterioração do Estado de Direito para uma parte significativa dos nossos concidadãos e, assim, para toda a sociedade basca. As actuações da Audiência Nacional em múltiplos sumários, que levaram ao encerramento de periódicos, à dissolução de partidos políticos, a encarceramentos indiscriminados, etc., fazem com que vivamos numa espécie de estado de excepção, inimaginável na venturosa Europa.
O popularmente conhecido «Pacto Antiterrorista», assinado em Madrid pela dupla PP-PSOE a 8 de Dezembro de 2000 e desenhado como estratégia do Governo Aznar para combater a ETA, estabelece as bases de uma estratégia comum para o País Basco (reformas legislativas, política penitenciária, cooperação internacional, mobilização da cidadania e institucional, etc.). A este pacto juntou-se a Lei de Partidos Políticos (27 de Junho de 2002), criada ad hoc para declarar ilegal o Batasuna e que contou com a aprovação ardente e imediata do PSOE e, singularmente, não o esqueçamos, do PSE, que agora diz que vai alargar as liberdades e o autogoverno de Euskadi. Ambos conformam o marco jurídico que permite todo este deplorável despropósito, juntamente com a entusiasmada colaboração dos juízes mais iluminados da Audiência Nacional. Estes, após nove anos de tramitação de um processo judicial com uma carga política que deixou sem efeito os direitos processuais e as garantias jurídicas de 46 acusados bascos pertencentes a empresas e entidades vinculadas ao nacionalismo basco não institucional processadas no Macro-Sumário 18/1998, desenvolveram a tergiversada mas produtiva teoria do juiz Baltasar Garzón de que “tudo é ETA”, ou o que em afortunadas palavras Mariano Ferrer chama o “terrorismo desarmado” e outros o terrorismo pacífico. Esta acusação de “proximidade ideológica” ao ambiente da ETA em muitos casos assemelha-se à acusação de heresia que se realizava nos tempos da Inquisição, em que a prova não era necessária.
Referimo-nos à ordem que o juiz Baltasar Garzón ditou para deter e posteriormente encarcerar incondicionalmente as irmãs oriotarras Maribel e Blanca Bruño, gerente da empresa familiar, a primeira, e irakasle [professora] e também vinculada ao negócio, a segunda, acusadas de terem pago diversas quantidades de dinheiro à ETA, em relação com o denominado “imposto revolucionário”. No auto de prisão, o magistrado espanhol acusa-as de colaborar com a ETA e de ter pago de forma voluntária à organização armada, baseando-se numa carta de agradecimento remetida pelo grupo às imputadas. O juiz considera que as duas irmãs estão ideologicamente muito próximas da ETA e que têm o caminho aberto para continuar a colaborar.
Há dois aspectos que queremos destacar neste facto. Em primeiro lugar, consideramos bastante improvável essa voluntariedade no pagamento quando a família e a própria empresa das detidas sofreram durante 28 anos a extorsão económica da ETA, tal como manifestou Andrés Bruño, proprietário de uma empresa marisqueira fundada há 50 anos e pai das detidas, na sua «Carta de um pai destroçado», que remeteu aos meios de comunicação a 18 de Junho.
Na carta referida assinalava que em 1980, quando era autarca de Usurbil pelo PNV, ele mesmo tinha dado o passo inédito naqueles tempos de denunciar a “extorsão” e a “ameaça física”, de que começou a ser vítima por parte dos Comandos Autónomos Anticapitalistas, organização nutrida em parte pelos antigos membros Bereziak da ETA político-militar com o fim de suprir os gastos que acarreta a prática da luta armada revolucionária. É também chocante que se parta a corrente pelo elo mais débil, umas irmãs indefesas, sem resguardos políticos ou de associações empresariais, e que sejam as duas únicas pessoas encarceradas actualmente pelo pagamento do chamado imposto revolucionário num país onde, sem dúvida, se poderiam encontrar inúmeras pessoas passíveis de acusação pelo mesmo “delito” [entretanto, as irmãs saíram em liberdade a 4 de Julho, depois de terem pago "voluntariamente" 20 000 euros de fiança]. Acaso existe uma pretensão judicial subjacente segundo a qual as filhas extorquiam dinheiro ao pai? Absurdo ao extremo.
Em segundo lugar, consideramos que esgrimir o argumento da “proximidade ideológica” das mencionadas irmãs para o seu encarceramento incondicional não deixa de ser “um novo passo na criminalização das ideias” e “uma aberração jurídica”. O pai das detidas, Andrés Bruño, na mesma carta viu-se obrigado a justificar o distanciamento das suas filhas em relação ao mundo independentista, realizando esclarecimentos sobre o seu posicionamento político, que são estritamente do âmbito pessoal. Ver-se obrigado a indicar que a sua filha Blanca votou nas últimas eleições para a tentar livrar da prisão não anda muito longe de tentar demonstrar perante os nazis a pureza da raça. O facto de ter que realizar este tipo de manifestações públicas lembra-nos também os autos de fé, que foram uma manifestação pública da Inquisição, e outros momentos obscuros da humanidade, como a caça às bruxas promovida nos EUA pelo senador republicano Joseph R. McCarthy (1908-1957) sobre pessoas do Governo e outros suspeitos de serem agentes soviéticos ou simpatizantes do comunismo infiltrados na Administração Pública ou no Exército, ou as actuações do juiz nazi Roland Freisler (1893-1945), presidente do Tribunal Popular da Alemanha nazi, participante nas reuniões para a “Solução Final” do chamado “problema judeu” na Europa. As pessoas que eram suspeitas de proximidade aos denominados hereges, comunistas ou judeus converteram-se no alvo das actuações judiciais, tal como está a acontecer neste país com as pessoas e organizações mais ou menos próximas da esquerda abertzale.
Dito o anterior, o que cada vez parece mais claro é a terrível falta de defesa jurídica que têm os bascos de cidadania espanhola, submetidos à Audiência Nacional de Madrid (instituição herdeira do Tribunal de Ordem Pública franquista). Neste sentido, e enquanto não dispusermos de um Poder Judicial próprio, que percorra todas as instâncias, seria desejável que o Tribunal Europeu de Direitos Humanos tomasse quanto antes cartas na matéria, tanto para corrigir sentenças como para inspeccionar se as actuações destes juízes internos se ajustam ao Convénio Europeu de Direitos Humanos ratificado pelo Estado espanhol. De facto, no caso da ilegalização do Batasuna, a demanda já foi admitida a trâmite.
Entretanto, com este tipo de actuações, o juiz Baltasar Garzón tornar-se-ia merecedor, salva rerum distantia, dos elogios que o cronista espanhol da época, Sebastián de Olmedo, utilizou para se referir ao tristemente famoso Frei Tomas de Torquemada (1420-1498), Primeiro Inquisidor Geral de Castela e Aragão, no século XV, confessor da rainha Isabel a Católica e presidente do Conselho Supremo do Santo Ofício: “O martelo dos hereges, a luz de Espanha, o salvador do seu país, a honra da sua ordem”. Como é sabido, o nome de Torquemada, como parte da lenda negra da Inquisição espanhola, converteu-se num símbolo da crueldade e do fanatismo ao serviço da religião, ou seja, do Poder constituído.
Anjel ERRASTI
Jon GURUTZ OLASKOAGA
José Manuel CASTELLS
Virginia TAMAYO
[professores da Universidade do País Basco]
Fonte: Gara