sábado, 19 de dezembro de 2009

Antonio Álvarez-Solís: «Desejo uma aproximação entre bascos alimentada pelo fogo soberanista»


Antonio Álvarez-Solís, jornalista, entrevistado por Anjel Ordóñez

Com 80 anos feitos, Antonio Álvarez-Solís aparece todas as semanas nas páginas de opinião do Gara com a pluma carregada de análises e propostas, de crítica severa e também de esperança. O livro Así veo Euskal Herria reúne uma selecção desses ensaios, escritos a como reflexão estreitamente ligada à actualidade de um povo, o basco, a quem quer e em que confia.

Como é que Alberto Surio, director da EiTB, lhe comunicou o fim da sua colaboração com a entidade?
Não foi Alberto Surio quem mo comunicou, nem sequer o director da Radio Euskadi. Um chefe de secção ligou-me numa sexta-feira para me dizer que na segunda já não continuava. Eu pensava que, tendo em conta minha idade e a minha longa trajectória profissional, as aparências iam ser outras. Dizem que foi por razões económicas e de poupança, mas eu tenho a certeza moral de que a demissão tem uma base política.

Estava à espera?
Francamente, não. É verdade que nos últimos tempos me estavam a colocar nuns horários difíceis para mim, pela minha idade; primeiro à uma da manhã e depois às cinco da madrugada, mas esperava que pouco a pouco me fossem colocando em sítios mais neutros, relacionados com a cultura... nunca suspeitei de um final tão abrupto.

Por vermelho ou por filo-separatista?
Eles, que se dizem de esquerda, não se importam que uma pessoa seja comunista, porque estão bastante habituados a um comunismo muito servil, domesticado. Acho, sinceramente, que foi por ser um homem que batalha contra os estados actuais a favor de Euskadi. Já me aconteceu quando trabalhava em órgãos estatais. Começaram-me a surgir as demissões quando disse com clareza o que se estava a passar e podia vir a passar em Euskadi. Isto foi o início da minha débâcle profissional em Madrid. Depois fui para Euskadi e continuei a manter a minha postura, como sempre o farei. Não pensem que com os meus oitenta anos vou cometer um acto de deslealdade ou traição contra as minhas próprias ideias! E não se trata de ficar empedernido, eu sou o primeiro a rever as minhas convicções, para o caso de haver uma falha, mas não a encontro.

Como interpreta a queda acentuada e contínua de audiência da EiTB?
Eu sempre defendi que a Radio Euskadi e a ETB têm de ser emissoras nacionalistas, por uma simples razão: se quiserem defender a política que o Governo central espanhol decreta, já existem outras mais fortes e potentes a fazê-lo e que podem fornecer mais serviços. Sem abandonar a objectividade e a pluralidade, a EiTB deve optar entre ser nacionalista ou não ser nada.

Por isso, o cidadão comum agora viu-se traído, como se viram traídos muitos bascos por determinados movimentos políticos. E reage. Isso evidencia-se quando o abertzalismo de esquerda sofre uma investida, porque obtém grandes apoios, superiores ao número da sua própria militância. Continuo a pensar que o povo basco não está farto da política de combate pela liberdade; pelo contrário, cada vez sofre mais e com cada nova investida de Espanha essas posturas tornam-se mais firmes. Espanha sempre teve essa «virtude», a de não dialogar com ninguém.

É notícia o julgamento relacionado com o encerramento do Egunkaria. O fechamento de meios de comunicação como o Egin e a Egin Irratia, entre outros, e o encarceramento de jornalistas coloca a liberdade de expressão e de informação no Estado espanhol em momentos críticos...
Assim é, e talvez me acusem de ingénuo, mas ainda espero uma sentença notável a favor dos inocentes, que são os que estão sentados agora no banco dos réus. Mas pode acontecer qualquer coisa e não me surpreenderia, porque o ataque é já descarado. Disseram-no claramente quando afirmaram que «ainda que a ETA desapareça prosseguiremos a batalha». No fundo, a violência favorece-os muito porque une muita gente em Espanha que assumiu uma postura agressiva, não contra a independência de Euskadi, mas contra o basco. Estou convencido de que, se desaparecesse a violência, também não veriam nenhum inconveniente em continuar a aplicar instrumentos como a Lei de Partidos ou outras instituições armadas.

Você viveu a guerra de 36 e a ditadura de Franco, o que é que veio depois?
Nada. Eu defendo que Franco não morreu. Fala-se de transição, mas, entre outras coisas, as pessoas que estiveram à frente dessa transição não possuíam preparação democrática. Embora alguns dos chamados pais da Constituição, como Solé Tura, tivessem estado na clandestinidade, não tiveram preparação democrática. A transição foi mais a celebração da morte de Franco que a abertura para uma fórmula de democracia. Mas o ditador não tinha morrido, o ditador já tinha contaminado todas as esferas políticas de sucessão. Depois veio a desculpa de que se fez o que foi possível pelo medo às forças armadas. Isso é falso, porque eu nunca vi um militar sublevar-se sem primeiro se assegurar que tem por trás algumas minorias financeiras ou religiosas. A transição não foi mais que uma nova pintura no sistema de democracia orgânica de Franco. E com essa democracia orgânica continuamos.

Vamos a tempo de recuperar a memória histórica?
Digo sempre que não devemos confundir a memória histórica com a recordação histórica. A memória histórica é uma recordação que funciona activamente, que não dá por morto o passado. Quando se desenterram os restos daqueles mortos, desenterra-se o drama do assalto ao regime legal republicano. Agora ainda não existe memória histórica, mas apenas recordação histórica, para além do mais, manietada pelo poder com muita falsidade, com deslealdade. Eu não estarei satisfeito até que chegue uma república que se ligue à anterior à guerra, seja em que sentido for, isso já dependerá dos cidadãos. Mas reconhecendo que a continuidade não existiu. Por isso, o actual regime brota de umas raízes apodrecidas.

Que porta se tem de abrir para permitir uma solução para o conflito entre Euskal Herria e o Estado espanhol?
A associação de todos os nacionalistas. De todos, porque ser nacionalista sem ser soberanista é como dar música. Se o nacionalismo são as traineiras e bailar o aurresku... isso já existia nos tempos de Franco. Os factores culturais são muito valiosos, mas um dos mais importantes, como é a língua, jamais foi respeitado. Seria interessante um grande movimento republicano em Euskadi que, sem prejudicar o funcionamento de cada partido nacionalista ou de esquerda real, articulasse três pontos centrais: a autodeterminação, a consulta pública e o caminho para a soberania. A Euskadi, morreram-lhe as suas últimas aspirações de liberdade com a República, combatendo no lado republicano. É preciso fazer um esforço para nos juntarmos todos e substituir a lógica da retórica pela da coerência. Espero que essa aproximação entre bascos seja cada vez maior e mais alimentada por fogo soberanista.

É preciso evitar essa espécie de má lei do cansaço histórico que às vezes entra nas comunidades em função do esforço continuado, mas sinceramente não vejo que essa fadiga afecte ainda os bascos. Acontece, no entanto, que alguns mostram ser nacionalistas e não o são, porque no fundo não reconhecem a sua capacidade soberana, convertendo assim o nacionalismo em folclorismo, no culturalismo, unicamente. Penso que esses bascos sempre estiveram com os olhos postos em Madrid. Pelo contrário, acho que é muito importante a reflexão que o abertzalismo de esquerda está a fazer, porque está muito enraizada nas classes populares.

Estamos a perder uma oportunidade de ouro com a crise?
Estamos a perder a oportunidade de retomar a consciência e a nossa linguagem como trabalhadores. A palavra revolução apresenta-se-nos como uma ligeireza infantil, porque nos querem fazer crer que a crise é apenas consequência de problemas técnicos. Dizem-nos que vigiemos os homens das finanças para que não façam disparates e que assim tudo correrá bem. Mas não é assim, o capitalismo não pode dar frutos diferentes dos que dá, como uma macieira não pode dar peras. Deveríamos retomar a consciência de classe que há em Euskadi, precisamente através do nacionalismo e do sindicalismo nacionalista. Porque existe quase uma equivalência entre o nacionalismo e uma visão colectivista da sociedade.

«O exemplo de Euskadi é vital para outros países»

Antonio Álvarez-Solís faz parte da história recente do jornalismo espanhol. Mudou muito, a profissão?
Eu vivi a profissão a partir de uma formação ideológica, que não era a de Franco, como é evidente, mas que se baseava no modelo da imprensa soviética ou saxónica. Para além disso, militávamos em ideologias, vínhamos da rua e estávamos envolvidos nela. Quando introduziram os títulos universitários, houve uma mudança, uma espécie de ordenação no mundo institucional. E acontece que todas as instituições são de classe e ninguém pode pensar que hoje em dia a universidade tem como finalidade criar socialistas reais ou revolucionários a nível ideológico.

O que é que o leitor ou a leitora vão encontrar em Así veo Euskal Herria?
Os pequenos ensaios que tenho vindo a escrever no Gara nos últimos tempos. É curioso, porque recordo que escrevi outro livro que se intitulava El año que va a pasar com os ensaios que publiquei no Egin, que possuíam a mesma dimensão que os actuais, do Gara. Então, fazia uma análise de pessoas e situações que com o tempo se vieram a mostrar bastante acertadas. O que pretendi foi aplicar a base doutrinal em que me formei aos acontecimentos que se estão a dar em Euskadi. É isso que tento cada dia, com a intenção de ajudar o processo nacionalista, que a mim me parece vital como exemplo para outros países. E pretendo sempre elevar a anedota a categoria, através da revisão crítica dos factos, interpretando-os a partir de uma reflexão ideológica.
Fonte: Gara