terça-feira, 22 de dezembro de 2009

A cela 762


Curiosamente, tiveram de ser a prisão e um sólido guião escrito sobre um thriller prisional os ingredientes que permitiram ao cinema espanhol lançar uma produção capaz de competir nas salas com os filmes ao gosto do público em geral. Celda 211 combina géneros cinematográficos vários, e mescla-os de uma forma eficaz para criar uma história de tipo social com toques de crítica política. O humor, a acção e o drama impõem-se alternadamente, enlaçando acontecimentos que se sucedem de forma trepidante, sem nos deixar respirar. Por mais que inclua situações inimagináveis e retratos pouco verosímeis, Malamadre - o protagonista - convence. Sobretudo no momento de nos transportar para esse poço cheio de merda que é o sistema penitenciário espanhol.

O argumento tem um começo marcado pelo acaso. Juan, um carcereiro novato, apresenta-se no seu novo destino um dia antes da incorporação oficial. Ali, sofre um percalço minutos antes de que se desencadeie um motim no sector dos FIES, os presos sociais mais reprimidos. Perante esse panorama, os restantes carcereiros abandonam à sua sorte o corpo desmaiado de Juan na Cela 211. A fábrica de sonhos produzida, entre outros, pela Telecinco, escolheu uma pirueta do destino pouco menos que impossível para se aproximar das entranhas de um Estado aferrado à violência com garras de aço. Mas o brutal drama penitenciário de que os presos políticos bascos são protagonistas não cabe em cento e dez minutos de celulóide.

Na última cela preparada para albergar «terroristas bascos», a número 762, atendendo ao número de pessoas que compõem, actualmente, o Colectivo de Presos Políticos Bascos, há uma jovem acusada de militar no movimento juvenil. Ainda não conseguiu arrancar dos seus pesadelos as torturas, vexações, ameaças e o riso de hiena dos seus captores, mas já teve oportunidade de sentir no pescoço o bafo canalha da prisão. As pontas dos dedos marcadas com tinta, todos os seus pertences retidos, incomunicável num módulo desumanizado e obrigada a pedir autorização até para tomar duche. A carcereira que lhe abre e fecha a porta possui um carácter muito distinto do do co-protagonista do filme de Daniel Monzón.

Essa frialdade corporativa dos de uniforme contrasta com a alegria de ouvir vozes amigas pela janela. Colando o ouvido à grade que clausura a sua única fonte de ar puro, escutou desde o primeiro momento os encorajamentos das suas companheiras do módulo contíguo. Assim ficou a saber que na mesma operação levaram mais uma trintena gorda de jovens, e que a resposta em Bilbo juntou uma multidão. Pôde verificar como as lágrimas tornam possível abraçar tanta gente num instante, e como é saudável deixá-las deslizar suavemente até à boca. A solidariedade é húmida e quente, como uma noite de Agosto.

A primeira companheira com quem falou está na prisão há mais de vinte anos. Cumpriu a sua pena há três, mas a Audiência Nacional tinha preparado o auto judicial que prorrogaria a sua condenação por mais treze anos. Disse-lhe que o mais duro foi assumir que a sua ansiada contagem decrescente, a que associava projectos e viagens, reencontros e noites a olhar para o céu estrelado, tinha parado bruscamente. Voltar a sentir o tempo, a passagem dos meses, como um cão de presa ameaçador, foi, disse-lhe, muito pior que ler a resolução que a aproximou de um triste secretário do tribunal.

Outra disse-lhe que na sexta-feira passada perdeu o seu encontro mensal. Roubaram-lho, muito simplesmente. Os carcereiros da entrada, de circular em punho, pretendiam revistar e até revolver as fraldas do seu filho de vinte e um meses para a deixar passar. Fosse qual fosse o pretexto, aquilo que queriam era impedir que desfrutassem dessas migalhas de tempo em comum que administram com crueldade. E conseguiram-no. Mas qualquer alternativa era pior. Antes fechar os olhos e cerrar os dentes do que as mãos enluvadas de um carcereiro a roçarem a pele suave e branca do seu menino.

Na cela 762 as paredes falam. A argola soldada ao catre metálico delata as tareias que, algemados, centenas de presos levaram; a sujidade acumulada denuncia a insalubridade que custou a vida a outros tantos. A luz branca do tecto ilumina os milhares de dias passados em greve de fome e os fechamentos. O velho calendário artesanal, os milhões de horas aguardando a visita dos seres queridos. Deparar com a arquitectura gradeada da prisão emociona. Vinte e dois presos políticos bascos atravessaram, já sem vida ou desenganados, o seu umbral; dezassete familiares perderam a vida ao tentarem chegar com pontualidade ao locutório das visitas. O óxido dos ferrolhos é incapaz de corroer a memória colectiva das mais de sete mil pessoas que foram encarceradas em Euskal Herria por motivos políticos nos últimos cinquenta anos.

No primeiro sábado do ano de 2010 há que trilhar com força as ruas de Bilbo. O apelo à expressão da solidariedade com os presos políticos bascos não é uma formalidade sazonal ou mais uma concentração em sua defesa. Agora que falamos de acumular forças e de unir, onde encontraremos um caudal de energia maior que o que encerram os muros dos estados? Trazê-los para casa é também uma questão de eficácia política, e, embora os pontos fulcrais do conflito sejam outros, quanto mais cedo movermos os alicerces da estratégia de aniquilação dos presos, mais depressa estremecerão e cairão os muros que os encerram. Não podemos esperar pela instauração de um quadro democrático para começar a construir Euskal Herria, e menos ainda conceber a amnistia como o acto final de um acordo político com os estados, ainda distante. Reivindicar essas 762 pessoas e disseminar uma pedagogia política impecável, segundo a qual respeitar os seus direitos e libertá-los representa um dos melhores investimentos para avançar num processo democrático, constituem um desafio importantíssimo para o ano que arrancará no dia 2 em Bilbo.

Ao contrário do que se passa no filme de sucesso, Malamadre nunca sequestraria presos políticos bascos para pressionar o Estado ou forçar a melhoria das suas condições de vida. Os presos FIES sempre souberam identificar os seus aliados e pôr no seu lugar o inimigo comum. Partilhar o silêncio dos módulos de isolamento, saborear o café trazido por uma mão amiga, passar o «carro» de janela em janela, fazem parte da solidariedade intuitiva intramuros. Poucas coisas existem aí dentro tão vivas.

A cela 762 está aberta de par em par, e o sol ilumina todos os seus recantos. A sordidez esfumou-se, e nas galerias apenas restam marcas fugazes que conduzem à saída. A câmara persegue as sombras de quem já não está. O plano seguinte corresponde à Plaza Berri, no meu bairro. Flores e abraços envolvem a última a chegar, a verdadeira protagonista dessas emoções que merecem ser filmadas. Tornemos realidade este filme e que seja um êxito de bilheteira. Compremos a entrada para sábado, dia 2 de Janeiro, na Aita Donosti.

Joxean AGIRRE
Fonte: apurtu.org