quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

É um deserto circular, o mundo


Muitos me dirão que sou um velho repetitivo, que a minha mensagem está caduca e que os meus dedos ficaram presos nas ramagens do passado. É provável que apenas preste atenção ao presente e que, apesar da minha actividade em redes de comunicação, com aparelhos sem fios e entre viagens ultra-sónicas, veja as circunstâncias que nos envolvem reflectidas no espelho da repetição.

A realidade é pesada. No dia 1 de Outubro de 1939, 226 donostiarras foram presos no interior da igreja dos padres Franciscanos porque, presumivelmente, tinham ido a uma missa no aniversário de um gudari morto. Os detidos foram parar às prisões de Ondarreta e Zapatari e julgados um ano depois «por actividades anti-españolas y comisión de actos indiscretos y aún sacrílegos por aprovecharse de solemnidades litúrgicas».

Entre os detidos naquela operação estava o meu bisavô e um dos seus filhos. Outros três dos seus filhos estavam na prisão, entre eles o meu avô. O pobre homem mal podia exteriorizar a aflição pelo futuro dos seus atrás das grades, suspirava por notícias deles e cometeu aquela «loucura» religiosa sabendo que ele mesmo poderia ser detido. Parece uma brincadeira, mas aconteceu como o conto.

Naquela época, o pai da minha companheira era julgado no Dueso, acusado de «queimar igrejas». Quando recebeu a notícia da acusação, não pôde senão reprimir um sorriso. Jamais tinha entrado numa igreja. Menos para a calcinar. Era uma calúnia, das muitas que foram lançadas aos soldados bascos que tinham ficado cercados em Santoña, depois de acordos alcançados entre jeltzales e italianos. Mas era preciso condená-los por alguma coisa. E isso inventava-se com suma facilidade.

No dia 24 de Novembro de 2009, uma operação policial espanhola terminou com 33 jovens enviados para as prisões e a inspecção de cerca de uma centena de habitações e estabelecimentos. Foi a maior razia policial no País Basco em todo o século XXI. As condições das detenções, as denúncias de maus tratos, o regime de incomunicação, a humilhação e a apreensão de numerosos pertences de uso habitual (livros, discos, vídeos, computadores, apontamentos universitários), transformando-os em «activos terroristas», foram descritos pelos meios de comunicação. «Não deixes que a realidade te estrague uma boa notícia», refere o velho adágio. Neste caso, a notícia estava escrita há já dezenas de anos. A realidade, conhecemo-la de sobra. Uma coisa não tem nada a ver com a outra.

Um destes últimos detidos era meu filho, tetraneto daquele pai afligido pela sorte dos seus, neto daquele gudari de Santoña cuja sentença, à falta de recursos, transformaram em folha paroquial. Dir-me-ão que ligo coisas desordenadas de forma desafiante e que o sangue é apenas isso, um fluido que circula por veias e artérias. Mas, deixem-me, pelo menos, que o questione. Octavio Paz dizia-o na sua «Elegía Interrumpida»: «Es un desierto circular el mundo. El cielo está cerrado y el infierno vacío».

Quando as patadas caem sempre do mesmo lado, com que lidamos desde o princípio dos tempos na tertúlia caseira, há uma armadilha no panorama. Uma armadilha enorme, directamente proporcional ao objectivo que quer perseguir. E esse objectivo não é outro senão a posse de um pedaço de terra, também da riqueza que gera, claro, e a obrigatoriedade de ter um apelido não desejado. O resto é fumarada.

Não inventamos nada, senhorias. A vida é um remake. Vocês não fizeram mais que transformar a caligrafia em letra courier, o esboço a lápis em fotografia digital, a pomba mensageira em correio electrónico. A eterna roda da nora, como escreveu Antonio Machado.

O relógio parou em tempos perdidos, a areia ficou bloqueada no corredor da razão. Já passou mais de um mês desde que pedimos uma audiência com o autarca da nossa cidade. Com fama de tipo estupendo, dialogante e tolerante. Um disfarce de Carnaval. Não teve sequer um minuto para receber um grupo compungido de habitantes, pais e mães, alarmados pelas tropelias cometidas no sangue do seu sangue.

Ao invés, esse autarca circense deparou de imediato com um grupo de consumidores preocupados pela falta de energia para quadra de Natal. A sua agenda abriu-se para os visitantes extraterrestres e fechou-se para os que, humildemente, queriam partilhar a impressão de que ser jovem não é, necessariamente, um crime terrível. Continuamos como nos tempos de Weyler. E o estupendo não é o único. São os reizetes do espectáculo, porta-vozes do nada.

Outros recusaram-nos a sua presença no Parlamento basco. Queríamos, com a voz, descrever as seis letras do terror e as outras seis da vileza. Persiana à palavra, o mundo é dos surdos. Depois conferenciam sobre a transversalidade. Um embuste. Nunca acreditei nessa palavrão, menos ainda nos últimos tempos, quando os oportunistas da política a usam para manifestar a sua condição de democratas. Aqui, uns e outros estão em barcos diferentes. Ninguém salta. Quando soa o apito, só há abordagens mercenárias.

Aquele amigo que viveu mais de 65 anos no exílio, Mario Salegi, contou-mo há alguns anos, pela primeira vez. A nossa espécie é grupal. Os nossos trajectos podem ser mais longos ou mais curtos. Mais extravagantes ou mais previsíveis. Brancos ou pretos. E embora a corda se retese ou se estire mais do que é habitual, dizia Salegi, regressamos sempre à tribo. A casa, que Gabriel Aresti defendeu naquela memorável poesia. A sua vida, a de Salegi, foi a expressão máxima desta sentença barojiana.

E os sinais, os gestos de consolo ou de ânimo chegam sempre do mesmo lado. De casa, da tribo, mesmo que a palavra incite a uma imagem pré-histórica. Juro-vos que escrevo com computador. Nestas semanas essa percepção de grupo que somos aumentou. Na rua, no escritório, pelo telefone, por carta. Somos um povo que merece bastante mais do que recebe. Quando o muro de contenção se desvanecer, e as primeiras falhas já se vislumbram, a maré será imparável.

Esta é precisamente a nossa força. Sabemos que, face à adversidade, os laços se consolidam. Somos, para além disso, os da tribo, os únicos com memória. Fora do círculo, fora do cromlech, como diria Oteiza, fica o abismo. A mediocridade, a mentira, o dinheiro como único valor. O vómito.

Não há lugar para uma comissão da verdade sobre o franquismo, acaba de anunciar a porta-voz do Governo. Uma comissão que o Parlamento de Gasteiz tinha aprovado na sua legislatura anterior. A quem interessa a verdade neste mundo de ficção, neste teatro shakesperiano? Os que morreram quando as forças da ordem disparavam para o ar, nos controlos, nas esquadras, já estão mortos. Para quê ressuscitá-los?

A memória é a nossa espada. Regresso a ela. Essa nossa memória proporciona-nos o calor neste teatro que é o mundo. O que Weyler disse há mais de cem anos, guardava-o para hoje: «Yo no voy a hacer política de partido sino de guerra en defensa de la integridad nacional». Quando se referia à política de partido, estava a unir conservadores e liberais. Quando falava de integridade nacional, aludia à espanhola.
Quem renega o seu passado? Nisso andamos, apesar de a maioria desconhecer as façanhas do tal Valeriano Weyler, «pacificador de la Vascongadas, pacificador de Cataluña y pacificador de Cuba». Grande de Espanha e duque de Rubí. O modelo, a referência.

Não se conheceram, nem se encontraram no campo de batalha, por uma questão de poucos meses, mas aquele lugar cuja espanholidade Weyler defendeu, causando um milhão de mortos, teve um líder chamado José Martí, que deixou escrita uma citação que tenho sempre na carteira: «El amor, madre, a la Patria no es el amor ridículo a la tierra, ni a la yerba que pisan nuestras plantas. Es el odio invencible a quien la oprime, es el rencor eterno a quien la ataca».

Nesta altura, tenho tantos anos e tanta memória acumulada que, fora da minha casa, dos meus, do meu grupo, não albergo outros sentimentos que os anunciados por Martí. Gostaria que fosse de outra maneira. Mas nasci onde nasci. E estou extremamente orgulhoso dos meus e das minhas lembranças.

Iñaki EGAÑA
historiador
Fonte: Gara