Hoje, a sobrevivência de elementos do regime franquista encontra o seu maior e mais eficiente aliado em determinadas decisões e leis tomadas e promulgadas aqui e agora, em pleno regime declarado democrático, mais que na parafernália azul
Reflectir ou falar hoje em dia sobre Francisco Franco e sobre o regime que este liderou durante quarenta anos terá de implicar inevitavelmente uma observação sobre o que de ambos - ditador e ditadura - resta no actual sistema político vigente no Estado espanhol, especialmente quando acabamos de passar por mais um 20 de Novembro, aniversário da morte física do «caudilho», e um 6 de Dezembro, aniversário de uma Constituição que, pelo menos em teoria, deveria ter representado também a sua morte política e a progressiva desconstrução da herança desse regime.
Se queremos fazer esta reflexão partindo da honestidade e da coerência para com essa Memória Histórica Democrática e Antifascista que desejamos recuperar e construir, e para com essas vítimas do franquismo cujos direitos proclamamos e reclamamos, teremos forçosamente de nos referir à votação realizada no passado dia 19 no Congresso espanhol, na qual se decidiu por esmagadora maioria excluir um sector dessas vítimas do seu direito à verdade, à reparação e à justiça. Esta decisão foi tomada ao ser rejeitada por 318 votos contra 23 uma proposta que instava o Governo espanhol a reconhecer aos familiares de militantes de organizações político/militares - EGI Batasuna, MIL, ETA e FRAP -, que foram mortos ou torturados pelo regime franquista, os mesmos direitos que às restantes vítimas desse regime, incluindo o direito à reparação económica.
Temos noção de que, tal como ocorreu em anos anteriores, em torno deste 20 de Novembro houve concentrações, manifestações ou missas de sectores nostálgicos daquele regime fascista, mas temos ainda uma consciência mais aguda de que hoje a sobrevivência de elementos do regime franquista encontra o seu maior e mais eficiente aliado em determinadas decisões e leis tomadas e promulgadas aqui e agora, em pleno regime declarado democrático, mais que na parafernália azul. Algo sobra daquele regime nessa parafernália, mas em nosso entender ainda resta mais na decisão tomada no passado dia 19 de Novembro.
Esta afirmação é a todos os títulos real e objectiva, já que tanto a decisão como os efeitos práticos que dela se desprendem passam a fazer parte das considerações e da normativa da Lei de Memória Histórica, convertendo-se no veículo através do qual é a própria democracia actual - a ordem jurídica vigente - que reassume para um sector não pequeno de vítimas do franquismo considerações delitivas e penais - «terrorismo» - e resoluções condenatórias decretadas por aquele regime, assumindo também a impunidade e o esquecimento para com essas vítimas e os seus familiares, bem como a tarefa de tornar efectivas as ditas considerações - impunidade e esquecimento - na actualidade. A gravidade de tudo isto não há-de escapar a ninguém, porque supõe começar a legislar, a criar normas e leis, contra um sector das vítimas do regime franquista privando-as, através delas, do seu direito à verdade, à justiça e à reparação, e em grande medida através disso, da sua «recriminalização», do seu direito à memória.
Seguramente não nos causa estranheza a atitude de muitos dos que apoiam a exclusão destas vítimas do franquismo, uma vez que também não reconheciam a sua luta no momento em que a empreendiam, por não reconhecerem o carácter fascista daquele regime de «inegável placidez», já que dele participavam num ou noutro grau... O que surpreende e preocupa é a quantidade de cúmplices que encontraram na actualidade e a determinação que põem em conjunto de forma a manter, consolidar e ampliar com decisões como esta o modelo espanhol de impunidade, o mesmo modelo que continua a impedir até hoje que outras vítimas do franquismo também acedam à verdade, à justiça e à reparação, como são as vítimas do chamado «tardo-franquismo» ou os maquis...
Com decisões como esta, os mesmos poderes que argumentam razões de todo o tipo para não anular juridicamente nem uma só condenação do franquismo ou que são capazes de paralisar iniciativas judiciais como a do juiz Baltasar Garzón mostram-se capazes de assumir a sobrevivência de determinados elementos do regime franquista ao assumirem a sobrevivência e a prorrogação das suas considerações e condenações e incluindo-as na sua Lei de Memória Histórica. Isto implica escorar, renovar e assumir o que ainda sobrevive do regime franquista porque, recordemos, um regime sobrevive enquanto permanecem as suas considerações e leis, e neste caso que nos ocupa também, enquanto perdurar o esquecimento e o não reconhecimento para suas vítimas.
Por este andar, os únicos antifranquistas «assumíveis» ou «recordáveis» serão os que não lutaram contra Franco ou os que se arrependeram de repente de o terem feito, como é o caso de muitos dos que com votações e decisões como esta são - foram e são - a cabeça e a mão do modelo espanhol de impunidade, um modelo que nalguns aspectos começa a engolir já alguns valores e direitos - o direito à memória, à verdade, à reparação e à justiça para todas as vítimas do franquismo entre eles - que em nosso entender deveriam ser essenciais para um sistema que se diz democrático.
Martxelo ÁLVAREZ e Maite MANGADO
Ahaztuak 1936-1977
(*) Também assinam o artigo os membros da Ahaztuak 1936-1977 Lander García e Diego Paredes
Fonte: Gara
Reflectir ou falar hoje em dia sobre Francisco Franco e sobre o regime que este liderou durante quarenta anos terá de implicar inevitavelmente uma observação sobre o que de ambos - ditador e ditadura - resta no actual sistema político vigente no Estado espanhol, especialmente quando acabamos de passar por mais um 20 de Novembro, aniversário da morte física do «caudilho», e um 6 de Dezembro, aniversário de uma Constituição que, pelo menos em teoria, deveria ter representado também a sua morte política e a progressiva desconstrução da herança desse regime.
Se queremos fazer esta reflexão partindo da honestidade e da coerência para com essa Memória Histórica Democrática e Antifascista que desejamos recuperar e construir, e para com essas vítimas do franquismo cujos direitos proclamamos e reclamamos, teremos forçosamente de nos referir à votação realizada no passado dia 19 no Congresso espanhol, na qual se decidiu por esmagadora maioria excluir um sector dessas vítimas do seu direito à verdade, à reparação e à justiça. Esta decisão foi tomada ao ser rejeitada por 318 votos contra 23 uma proposta que instava o Governo espanhol a reconhecer aos familiares de militantes de organizações político/militares - EGI Batasuna, MIL, ETA e FRAP -, que foram mortos ou torturados pelo regime franquista, os mesmos direitos que às restantes vítimas desse regime, incluindo o direito à reparação económica.
Temos noção de que, tal como ocorreu em anos anteriores, em torno deste 20 de Novembro houve concentrações, manifestações ou missas de sectores nostálgicos daquele regime fascista, mas temos ainda uma consciência mais aguda de que hoje a sobrevivência de elementos do regime franquista encontra o seu maior e mais eficiente aliado em determinadas decisões e leis tomadas e promulgadas aqui e agora, em pleno regime declarado democrático, mais que na parafernália azul. Algo sobra daquele regime nessa parafernália, mas em nosso entender ainda resta mais na decisão tomada no passado dia 19 de Novembro.
Esta afirmação é a todos os títulos real e objectiva, já que tanto a decisão como os efeitos práticos que dela se desprendem passam a fazer parte das considerações e da normativa da Lei de Memória Histórica, convertendo-se no veículo através do qual é a própria democracia actual - a ordem jurídica vigente - que reassume para um sector não pequeno de vítimas do franquismo considerações delitivas e penais - «terrorismo» - e resoluções condenatórias decretadas por aquele regime, assumindo também a impunidade e o esquecimento para com essas vítimas e os seus familiares, bem como a tarefa de tornar efectivas as ditas considerações - impunidade e esquecimento - na actualidade. A gravidade de tudo isto não há-de escapar a ninguém, porque supõe começar a legislar, a criar normas e leis, contra um sector das vítimas do regime franquista privando-as, através delas, do seu direito à verdade, à justiça e à reparação, e em grande medida através disso, da sua «recriminalização», do seu direito à memória.
Seguramente não nos causa estranheza a atitude de muitos dos que apoiam a exclusão destas vítimas do franquismo, uma vez que também não reconheciam a sua luta no momento em que a empreendiam, por não reconhecerem o carácter fascista daquele regime de «inegável placidez», já que dele participavam num ou noutro grau... O que surpreende e preocupa é a quantidade de cúmplices que encontraram na actualidade e a determinação que põem em conjunto de forma a manter, consolidar e ampliar com decisões como esta o modelo espanhol de impunidade, o mesmo modelo que continua a impedir até hoje que outras vítimas do franquismo também acedam à verdade, à justiça e à reparação, como são as vítimas do chamado «tardo-franquismo» ou os maquis...
Com decisões como esta, os mesmos poderes que argumentam razões de todo o tipo para não anular juridicamente nem uma só condenação do franquismo ou que são capazes de paralisar iniciativas judiciais como a do juiz Baltasar Garzón mostram-se capazes de assumir a sobrevivência de determinados elementos do regime franquista ao assumirem a sobrevivência e a prorrogação das suas considerações e condenações e incluindo-as na sua Lei de Memória Histórica. Isto implica escorar, renovar e assumir o que ainda sobrevive do regime franquista porque, recordemos, um regime sobrevive enquanto permanecem as suas considerações e leis, e neste caso que nos ocupa também, enquanto perdurar o esquecimento e o não reconhecimento para suas vítimas.
Por este andar, os únicos antifranquistas «assumíveis» ou «recordáveis» serão os que não lutaram contra Franco ou os que se arrependeram de repente de o terem feito, como é o caso de muitos dos que com votações e decisões como esta são - foram e são - a cabeça e a mão do modelo espanhol de impunidade, um modelo que nalguns aspectos começa a engolir já alguns valores e direitos - o direito à memória, à verdade, à reparação e à justiça para todas as vítimas do franquismo entre eles - que em nosso entender deveriam ser essenciais para um sistema que se diz democrático.
Martxelo ÁLVAREZ e Maite MANGADO
Ahaztuak 1936-1977
(*) Também assinam o artigo os membros da Ahaztuak 1936-1977 Lander García e Diego Paredes
Fonte: Gara