sexta-feira, 10 de outubro de 2008

Condenar? Não condenar?


PARA PACEM (II) – Depois de «É um crime contra a paz (si vis pacem, para pacem!)», Sastre apresenta-nos uma nova reflexão sobre a situação em Euskal Herria. Reflexões que compõem uma série de artigos que o GARA oferecerá aos seus leitores nos próximos dias. Hoje, Sastre aponta duas razões para que as pessoas possam não condenar as acções da ETA. A primeira reside no apoio das pessoas a essas acções. A segunda prende-se com o facto de as pessoas não se quererem posicionar contra um diálogo político, futuro e seguro, para resolver o conflito, dado que “uma mesa de negociação nunca se forma chamando assassinos aos virtuais interlocutores, nem exigindo-lhes que se ponham de joelhos e que beijem as solas dos sapatos dos que os convocam”.

Ao que parece, e em parte isso é seguramente assim, uma das chaves para que hoje nos encontremos numa espécie de beco sem saída – cuja saída haverá no entanto que procurar –, que impede, actualmente, a vida legal de determinadas organizações políticas patrióticas de esquerda, reside na recusa destas a condenar as acções militares ou terroristas, de acordo com quem as define em cada caso, da ETA. Militares? Terroristas? Já estou a ouvir a crítica que me podem fazer de um lado ou do outro, segundo as definam de uma maneira ou da outra; e outra vez aqui teria que recordar o que disse aproximadamente mil vezes no passado, atendendo à importância da semântica nas nossas relações (assunto este, o da semântica, que hei-de considerar num artigo que se há-de seguir a este que estou a escrever agora): que se costuma definir como “militares” as acções terroristas dos poderosos (opressores), e como “terroristas” as acções militares dos débeis (oprimidos); mas agora estamos a tentar ocupar-nos, pontualmente, do tema das condenações ou não da violência da ETA por parte de determinadas organizações.

Sobre este ponto, temos de dizer que se pode “condenar” “os terroristas da ETA” como faz o Sr. Ibarretxe, com grande entusiasmo sempre que se lhe apresenta a ocasião, e com fortes doses de “desprezo” (creio que a palavra é sua) e outros sentimentos veementes contra os autores de tais atentados, que considera certamente como uns filhos da puta (embora estas palavras não sejam suas), e que lhe “metem nojo” (estas palavras, sim, são dele), e não é por isso que consegue desembaraçar-se da suspeita, e até da acusação, de lhes dar o oxigénio necessário para que respirem. Pouco menos que um cúmplice da ETA é, para essas gentes, o Sr. Ibarretxe, e até se poderia temer que um dia destes acabassem por ilegalizar o PNV e, sem dúvida, o EA, para não falar do Aralar, por não condenarem de modo devido (será isso?) as acções a que nos estamos a referir. Ai, Senhor! Assim nunca chegaremos a lado nenhum! O espanholismo metafísico anda a ceifar as vias a qualquer solução? Não existirá algum dirigente de uma esquerda verdadeira nas fileiras da esquerda espanhola? (Porque também não se pode contar com a Izquierda Unida para uma tarefa desta envergadura, a da paz). Estamos, pois, num beco sem saída? Eu penso que um problema mais grave que o que nos é colocado pela inanidade de declarações como as de Ibarretxe, tão evidentemente condenatórias, talvez resida, por certo, na existência de organizações que “não condenam”, nem pouco nem muito nem nada nem de uma maneira nem de outra, essas violências.

Condenar, não condenar; aí, dizíamos, é costume afirmar que está a chave do problema. Nós acabamos de ver que as condenações não abrem caminho a uma solução, nem sequer as mais fervorosas. E isso porquê? Porque são condenações pronunciadas por partidários, embora sejam “moderados”, de uma certa soberania para o seu país (Euskadi). O que quer dizer, definitivamente, que a chave da questão não está na condenação ou na falta dela, mas no ser-se ou não partidário de uma férrea “unidade de Espanha”.

Se a chave não reside, pois, na condenação ou na falta dela, o que é que há, contudo (ou não resta nada), de verdadeiro em que tal condenação ou não condenação possa continuar a ser apreciado como a chave para que algumas organizações sejam atiradas para a morte civil da ilegalidade, e dezenas de milhares de cidadãos sejam desprovidos dos seus direitos políticos, que se supõem sagrados num “estado de direito”? (Será verdade o que o analista belga Jean-Claude Paye afirma, que estamos viver “o final do estado de direito”? Ver a sua obra com este título em Hiru, 2008)*.

Sejamos claros e vamos até ao coração do problema tão reiteradamente debatido; e então iremos deparar com duas razões muito concretas para a recusa à “condenação” das acções da ETA:
1 – Porque quem “não condena” está de acordo com essas acções.
2 – Porque quem “não condena” pensa que “condenar” tais acções os faria cair num coro de “condenadores” que os haveria de converter em figuras intoleráveis perante os interlocutores com os quais se deseja estabelecer a paz; e isto é sabido, claramente: que uma mesa de negociação nunca se forma chamando assassinos aos virtuais interlocutores, nem exigindo-lhes que se ponham de joelhos e que beijem as solas dos sapatos dos que os convocam.

Não sei qual é o caso das organizações que não condenam hoje as acções da ETA; mas se o problema apontasse para mim mesmo, que nunca publiquei condenação alguma a esse respeito nem subscrevi as que outros formularam, direi claramente, como o fiz outras vezes, que os dramaturgos pertencem à estirpe daqueles que na Grécia reflectiam sobre os grandes horrores, como o de Medeia (uma mãe que mata os seus filhos), procurando, neste caso, descobrir e revelar a responsabilidade de tão atroz acontecimento. A noção de tragédia situa-nos nestes territórios que em caso algum dispensam condenações ou absolvições, isto é, sentenças judiciais. Os dramaturgos podem ser acusadores mas em caso algum são juízes. (Se alguma coisa detesto com todas as minhas forças, é a tortura policial, e nunca publiquei uma palavra de condenação a esta prática ominosa. Condenar? Para quê?).

Noutro dia, num programa de rádio, ouvi um participante responder a outro que acabava de “condenar” não sei quem nem por quê: “Proíbo-te que condenes”, e acrescentar que “ninguém se pode elevar à condição de juiz supremo”. Bravo!, exclamei eu para as minhas entranhas.

E agora acrescento eu que: seja qual for a relação que haja entre a esquerda abertzale política e cultural – e eu sou da opinião de que só existe uma, isso sim, muito importante: a identidade do objectivo estratégico, a independência de Euskal Herria –, é preciso que, para a paz, as possibilidades de uma relação de respeito entre uns e outros não se rompam, o que aconteceria se essa esquerda passasse a cantar no coro das “condenações”, em que tantas pessoas intratáveis cantam. É por isso que opino que a esquerda patriótica não deve “condenar” essas acções, seja qual for a sua opinião sobre elas.

Alfonso SASTRE
escritor e dramaturgo

Fonte: Gara
* Primeira edição: Jean-Claude Paye, La fin de l'Etat de droit: La lutte antiterroriste, de l'état d'exception à la dictature, Paris, La Dispute, 2004. / Em inglês: Global War on Liberty, Nova Iorque, Telos Press, 2007.