terça-feira, 14 de outubro de 2008

Semântica para a paz


PARA PACEM (III) – Depois de «É um crime contra a paz» e «Condenar? Não condenar?», Alfonso Sastre aborda o terceiro fascículo da sua série sobre o momento histórico que Euskal Herria atravessa. Neste caso, repara na importância fundamental da semântica nas relações políticas e aplica este princípio a termos como “pacificar” ou “normalizar” Euskal Herria. Assim, Sastre pede que se exclame com veemência: «Viva a paz em Euskal Herria!», «Morra a pacificação!» e «Não deixemos que nos normalizem!».

“Pacificar” Euskadi! “Normalizar” Euskadi! É correcto desejar isso? É “uma simples questão semântica”? Muitas vezes ouvi empregar num sentido pejorativo e com entoação desdenhosa, ou, pelo menos, para atribuir importância à questão que se aborda, a palavra “semântica”. Com isso comete-se, digamo-lo aqui, já que o dissemos noutros sítios e a nossa opinião não parece ter sido lida, um grande erro, que pode trazer até funestas consequências para o pensamento envolvido em tal erro, porque, precisamente, para que as pessoas comuniquem e se entendam, sobretudo no caso de não estarem de acordo em alguma coisa, é preciso partir de um “acordo semântico”, para o chamar assim, que não é outra coisa senão um acordo sobre o significado das palavras que se empregam e se põem em jogo, porque, de outra forma, como nos vamos entender sobre as questões a tratar e sobre a possibilidade de solucionar os problemas que essas questões geram?

Isto é particularmente grave quando se trata de uma questão como a da possibilidade de que uma guerra termine sem que isso realmente aconteça, pelo facto de uma das partes ter sido posta fora de combate à pancada e desmoralizada através de humilhações sem fim (é o caso da “paz de Franco” em 1939, mas há muitos outros que se poderiam recordar, e não é menos importante o da chamada “paz de Versalhes”, que foi a base do que anos depois seria a Segunda Guerra Mundial; ou o da “pacificação da Indochina” pelos franceses, que albergou no seu seio o que havia de ser a chamada “guerra do Vietname”).

Hoje, ainda oiço alguns líderes da esquerda a dizer que consideram desejável a “pacificação de Euskadi” e a sua “normalização”. Isso faz-me calafrios, ao pensar como são horríveis as “normas” que regem oficialmente as nossas vidas, e o carácter militarista e policial que toda a empresa de “pacificação” implica; e ao dar-me conta de que ainda soa a escandalosa a afirmação, que eu tenho vindo a fazer há aproximadamente mil anos – é uma piada, como dizia aquele humorista –, de que a pacificação de Euskadi é uma empresa indesejável, além de impossível.

Enfim, na minha opinião, seria bom que aqueles que se dedicam à política procurassem também, um pouco, não ser ignorantes e culturalmente atrasados, e na verdade alguns são gente culta, mas eu falo da generalidade e emito um juízo assim mesmo geral, que é como uma regra confirmada (como se costuma dizer) pelas suas excepções. Assim, pois, o meu lema seria dar com um bastão na cabeça, como aconselhava García Lorca para castigar os actores “exageraos” (que é outro assunto), de todo o político, seja de esquerda ou de direita, que franza o sobrolho e diga com soberano desprezo pela linguagem: “Ah, isso é uma questão semântica!”.

Seja como for, afirmemos, então, a significação das palavras que nos dispomos a empregar, quando houver alguma dúvida sobre essa significação, nos nossos discursos e debates. Isso pôr-nos-á num caminho em que o entendimento entre os interlocutores é possível. Mas, por hoje, contentemo-nos com a exclamação de frases como as seguintes: Viva a paz em Euskal Herria! Morra a pacificação! Não deixemos que nos normalizem! Vamos pelos novos caminhos, ainda inexplorados, no magno projecto do que os venezuelanos chamam “um socialismo do século XXI”! E comecemos por reflectir sobre o que queremos dizer quando consideramos desejável “uma república” face ao arcaísmo das instituições monárquicas, e “o socialismo” face às muitas desventuras que o capitalismo implica.

O tema da república – que queremos dizer quando empregamos essa palavra? – é o que vamos abordar nos próximos encontros que havemos de celebrar em Novembro, um tema tão “semântico”!: “República para quê?”. Ou, melhor ainda: “Que república?”.

Assim, espero que sobre a mesa desses encontros os oradores e os participantes no debate nos esclareçam sobre questões como estas: Que propõe a Venezuela quando os seus actuais dirigentes se mostram partidários de “um socialismo do século XXI»? O que é uma “república bolivariana”? Ou o que pensa a nossa esquerda abertzale quando se proclama independentista e defende “uma república basca e socialista”?

Independentista é um termo que entendemos; mas o que é que existirá dentro dessa independência, ou seja, no espaço criado pela independência – a afirmação de um novo, pequeno, Estado – que se postula? Soberano, está bem; mas socialista? Como seria ou será, social e economicamente falando, essa nova república? Que existirá dentro dela? Como serão as relações económicas entre os seus cidadãos?

A ambiguidade da palavra “república” é bastante evidente, ao ponto de poder significar tantas coisas e abranger tantos factos diferentes que não significa absolutamente nada: não chega a ser uma palavra maldita, como “pacificação” ou “normalização”, que significam precisamente o contrário do que pretendem geralmente os seus utilizadores, e, nesse sentido, já não têm que enganar ninguém, por mais que o continuem a tentar, ou se continuem a enganar a si mesmos alguns dos que usam estas palavras.

Tenha-se em conta, o que será fácil, por muito pouco que se reflicta sobre tal, que no mundo de hoje existem monarquias republicanas (“constitucionalistas”), nas quais os reis “reinam mas não governam”, e repúblicas monárquicas (“presidencialistas”), nas quais de facto se exercem ditaduras sobre os cidadãos governados ou administrados.

Isso não pode levar ao que conduziu, noutros tempos, os comunistas espanhóis, ou muitos deles, a começar pelo seu secretário-geral, Santiago Carrillo, a considerar que o dilema «República ou Monarquia» era secundário e insignificante, o que abria outra vez a porta à dinastia bourbónica, mesmo que fosse dando um salto sobre o herdeiro de Alfonso XIII, que era Juan de Bourbon, o pai do actual rei de Espanha.

Mas ser republicano não pode significar simplesmente ser antimonárquico, porque a palavra “república” anda a pedir desesperadamente uma reformulação precisamente “semântica”. É o que vamos tentar nos nossos pequenos encontros de Novembro, para os quais vocês estão convidados e nos quais serão muito bem recebidos.

Alfonso SASTRE
escritor e dramaturgo
Fonte: Gara