PARA PACEM (IV) – Na quarta parte da sua análise sobre Euskal Herria e o conflito político que enfrenta, o autor aprofunda as possibilidades de um acordo entre as partes através de uma “mesa para a paz”. Na sua reflexão, centra-se na figura dos “especialistas em conflitos” e ele mesmo adianta diversos exemplos de figuras que ao longo da história serviram de intermediários para alcançar acordos em diferentes âmbitos. Como contribuição pessoal, propõe o dramaturgo – o grande dramaturgo – como um indivíduo especialmente capacitado para este trabalho, pelas características próprias do seu trabalho intelectual.
Disse muitas vezes – na minha idade a maior parte das coisas que se dizem já se disseram muitas vezes –, e nunca a brincar, que para nós, que escrevemos dramas, se devia reservar pelo menos uma cadeira à volta das mesas de negociação que se abrem para a resolução dos grandes conflitos, e sobretudo das que se celebram com o magno objectivo de alcançar a paz naqueles que desembocaram tanto em guerras entre Estados de qualquer índole como em guerrilhas populares contra Estados opressores: guerrilhas armadas às vezes com bombas de fabrico caseiro face a grandes polícias e exércitos dotados dos maiores avanços para provocar a morte (no que respeita às bombas caseiras, com frequência começam por matar quem as usa de uma maneira que se poderia chamar “suicídio patriótico”, ou então, “patriotismo suicida”, que são, enfim, sinais de um grande desespero relativamente à eficácia do uso da palavra na afirmação das justas reivindicações de muitos povos).
Naturalmente, nunca me referi a qualquer escritor teatral como merecedor de tais honras, mas sempre pensei naqueles que havia no teatro quando ainda existiam “os grandes autores”, e pensei ao falar assim nada menos que em Ibsen, Tchekov, Bernard Shaw, Pirandello, O’Neill, O’Casey, Toller, Lenormand, Sartre, e até em mais recentes como Bernhard e, claro está, eu próprio (é também uma piada, mas é verdade que quem isto escreve é um vestígio, entre poucos, daquela “grandeza” intelectual e poética que algumas vezes existiu nos cenários: “grandeza” a que sucedeu a dramaturgia como workshop de guiões ao serviço de qualquer propósito dos grupos “teatreiros”).
Em relação às “mesas para a paz”, para voltar a este importante tema, parece que nasceu uma “espécie de especialidade” que seria a dos “especialistas em conflitos”. E se assim é, em que consiste, pergunto-me, essa “expertise”? Pelo que li, esses “especialistas” partem geralmente de umas bases acertadas: as de que um conflito não pode ser resolvido, primeiro, se não foi previamente bem explanado, e, segundo, se não tem lugar uma certa “imparcialidade” nas conversações. Eu considero que há antecessores neste tipo de trabalho, e que havia que os procurar em figuras como as seguintes, historicamente visíveis não só para o estudioso mas qualquer simples leitor de História:
1 – Era aquele “terceiro” a quem “as partes” em litígio recorriam para que interviesse, a pedido delas, “na discórdia” em questão.
2 – Era aquele “homem bom”, assim chamado, que se convocava para que pusesse um certo “bom senso” nos conflitos; quer dizer, uma certa “objectividade” no que era, sobretudo, um confronto entre posições hipersubjectivas.
3 – Era “o norueguês”, que é uma variante das figuras anteriores, e que pode ser assim chamado (atribuindo-lhe essa nacionalidade) em lembrança de um norueguês real que interveio numas conversações de paz históricas (pode-se supor, certamente, que aquele norueguês já morreu, e, ai, é certo que o conflito que se procurava resolver continua hoje a causar intenso sofrimento, e até quando será?).
4 – Era também – agora no plano do imaginário: da literatura – Sancho Pança, como um modelo desse “bom senso” necessário para que as grandes paixões não impeçam de olhar e ver alguns elementos necessários para que a solução não apenas dos grandes mas também dos pequenos conflitos encontre uma porta de saída. Sancho Pança? Sim. Releia-se, se já foram lidas, as passagens do D. Quixote em que o famoso escudeiro, nomeado pelos Duques governador de uma fantástica “ilha”, dita sábias sentenças perante os conflitos que lhe são colocados.
5 – E, por fim, poderiam ser, e aqui chego à minha própria vez, os dramaturgos. É, digo, a minha vez, ou acaso a minha ideia, e sou eu que a devo explicar. Que quero dizer com ela? É muito simples: que os dramaturgos – como esclareci: os grandes dramaturgos – são verdadeiros especialistas em conflitos, e que podem pôr essas experiências ao serviço, por exemplo, da paz, se é que alguma vez são convidados para tal. Mas eu quero aclarar um pouco o sentido desta ideia, começando por desvanecer a imagem de que os dramaturgos têm que ser neutrais no campo das ideias e de que talvez fosse essa suposta neutralidade o que eles teriam que colocar ao serviço, neste caso, da paz.
A função das ideias no trabalho dos dramaturgos foi objecto de debate desde os tempos da Poética de Aristóteles. Este colocava as ideias em terceiro lugar, ao enumerar os seis componentes de uma obra dramática: a fábula, os caracteres, as ideias, a linguagem, o cenário e a música.
Sobre a função das ideias na criação de uma obra de teatro, houve opiniões muito diferentes, desde a que afirma que elas são a fonte dos dramas, e que estes devem estar ao serviço do pensamento (teatro de tese), à oposta: a de que as ideias devem ser afastadas do teatro. Eu estou tão longe dum como do outro; e é a partir desta posição que defendo a possibilidade de que os dramaturgos intervenham nos grandes conflitos, sem ter em conta a ideologia dos escritores que se convocassem, dado que estes – se são “grandes” – terão as suas ideias mas colocá-las-ão entre parêntesis quando aceitarem sentar-se nessa perigosa cadeira, em frente à mesa de negociações.
Porque assim é: nós, dramaturgos, inclusive os menos “grandes”, pomos as nossas próprias ideias entre parêntesis quando enfrentamos os conflitos que tratamos nos nossos dramas; e, assim, sem perder de vista o nosso próprio super-objectivo (Stanislavski) e, com ele, o nosso compromisso pessoal nos temas (pois não somos neutrais), não condenamos nenhum dos interlocutores e damos a todos eles a mesma liberdade de expressão, o que – isso é certo – nos coloca na situação de sofrer os efeitos de uma suposta ou certa ambiguidade. Esta é precisamente a nossa carta e por isso reclamo essa cadeira, na qual eu, certamente, não me atreveria a sentar.
Alfonso SASTRE
escritor
Disse muitas vezes – na minha idade a maior parte das coisas que se dizem já se disseram muitas vezes –, e nunca a brincar, que para nós, que escrevemos dramas, se devia reservar pelo menos uma cadeira à volta das mesas de negociação que se abrem para a resolução dos grandes conflitos, e sobretudo das que se celebram com o magno objectivo de alcançar a paz naqueles que desembocaram tanto em guerras entre Estados de qualquer índole como em guerrilhas populares contra Estados opressores: guerrilhas armadas às vezes com bombas de fabrico caseiro face a grandes polícias e exércitos dotados dos maiores avanços para provocar a morte (no que respeita às bombas caseiras, com frequência começam por matar quem as usa de uma maneira que se poderia chamar “suicídio patriótico”, ou então, “patriotismo suicida”, que são, enfim, sinais de um grande desespero relativamente à eficácia do uso da palavra na afirmação das justas reivindicações de muitos povos).
Naturalmente, nunca me referi a qualquer escritor teatral como merecedor de tais honras, mas sempre pensei naqueles que havia no teatro quando ainda existiam “os grandes autores”, e pensei ao falar assim nada menos que em Ibsen, Tchekov, Bernard Shaw, Pirandello, O’Neill, O’Casey, Toller, Lenormand, Sartre, e até em mais recentes como Bernhard e, claro está, eu próprio (é também uma piada, mas é verdade que quem isto escreve é um vestígio, entre poucos, daquela “grandeza” intelectual e poética que algumas vezes existiu nos cenários: “grandeza” a que sucedeu a dramaturgia como workshop de guiões ao serviço de qualquer propósito dos grupos “teatreiros”).
Em relação às “mesas para a paz”, para voltar a este importante tema, parece que nasceu uma “espécie de especialidade” que seria a dos “especialistas em conflitos”. E se assim é, em que consiste, pergunto-me, essa “expertise”? Pelo que li, esses “especialistas” partem geralmente de umas bases acertadas: as de que um conflito não pode ser resolvido, primeiro, se não foi previamente bem explanado, e, segundo, se não tem lugar uma certa “imparcialidade” nas conversações. Eu considero que há antecessores neste tipo de trabalho, e que havia que os procurar em figuras como as seguintes, historicamente visíveis não só para o estudioso mas qualquer simples leitor de História:
1 – Era aquele “terceiro” a quem “as partes” em litígio recorriam para que interviesse, a pedido delas, “na discórdia” em questão.
2 – Era aquele “homem bom”, assim chamado, que se convocava para que pusesse um certo “bom senso” nos conflitos; quer dizer, uma certa “objectividade” no que era, sobretudo, um confronto entre posições hipersubjectivas.
3 – Era “o norueguês”, que é uma variante das figuras anteriores, e que pode ser assim chamado (atribuindo-lhe essa nacionalidade) em lembrança de um norueguês real que interveio numas conversações de paz históricas (pode-se supor, certamente, que aquele norueguês já morreu, e, ai, é certo que o conflito que se procurava resolver continua hoje a causar intenso sofrimento, e até quando será?).
4 – Era também – agora no plano do imaginário: da literatura – Sancho Pança, como um modelo desse “bom senso” necessário para que as grandes paixões não impeçam de olhar e ver alguns elementos necessários para que a solução não apenas dos grandes mas também dos pequenos conflitos encontre uma porta de saída. Sancho Pança? Sim. Releia-se, se já foram lidas, as passagens do D. Quixote em que o famoso escudeiro, nomeado pelos Duques governador de uma fantástica “ilha”, dita sábias sentenças perante os conflitos que lhe são colocados.
5 – E, por fim, poderiam ser, e aqui chego à minha própria vez, os dramaturgos. É, digo, a minha vez, ou acaso a minha ideia, e sou eu que a devo explicar. Que quero dizer com ela? É muito simples: que os dramaturgos – como esclareci: os grandes dramaturgos – são verdadeiros especialistas em conflitos, e que podem pôr essas experiências ao serviço, por exemplo, da paz, se é que alguma vez são convidados para tal. Mas eu quero aclarar um pouco o sentido desta ideia, começando por desvanecer a imagem de que os dramaturgos têm que ser neutrais no campo das ideias e de que talvez fosse essa suposta neutralidade o que eles teriam que colocar ao serviço, neste caso, da paz.
A função das ideias no trabalho dos dramaturgos foi objecto de debate desde os tempos da Poética de Aristóteles. Este colocava as ideias em terceiro lugar, ao enumerar os seis componentes de uma obra dramática: a fábula, os caracteres, as ideias, a linguagem, o cenário e a música.
Sobre a função das ideias na criação de uma obra de teatro, houve opiniões muito diferentes, desde a que afirma que elas são a fonte dos dramas, e que estes devem estar ao serviço do pensamento (teatro de tese), à oposta: a de que as ideias devem ser afastadas do teatro. Eu estou tão longe dum como do outro; e é a partir desta posição que defendo a possibilidade de que os dramaturgos intervenham nos grandes conflitos, sem ter em conta a ideologia dos escritores que se convocassem, dado que estes – se são “grandes” – terão as suas ideias mas colocá-las-ão entre parêntesis quando aceitarem sentar-se nessa perigosa cadeira, em frente à mesa de negociações.
Porque assim é: nós, dramaturgos, inclusive os menos “grandes”, pomos as nossas próprias ideias entre parêntesis quando enfrentamos os conflitos que tratamos nos nossos dramas; e, assim, sem perder de vista o nosso próprio super-objectivo (Stanislavski) e, com ele, o nosso compromisso pessoal nos temas (pois não somos neutrais), não condenamos nenhum dos interlocutores e damos a todos eles a mesma liberdade de expressão, o que – isso é certo – nos coloca na situação de sofrer os efeitos de uma suposta ou certa ambiguidade. Esta é precisamente a nossa carta e por isso reclamo essa cadeira, na qual eu, certamente, não me atreveria a sentar.
Alfonso SASTRE
escritor
Fonte: Gara