terça-feira, 21 de outubro de 2008

«O período de incomunicação permite à polícia que ninguém saiba o que se está a passar»


Jaione KARRERA, advogada dos últimos detidos em Nafarroa, entrevistada por Ramón SOLA

“Desaparecimentos” como o de Alberto López Iborra, secretismo a envolver diversas detenções, capturas mesmo à porta da Audiência Nacional espanhola e denúncias generalizadas de tortura compõem o puzzle das últimas operações em Nafarroa. Jaione Karrera não crê que se trate de um salto qualitativo, mas avisa que o período de incomunicação confere à polícia margem de actuação para qualquer coisa.

Jaione Karrera é a advogada de quase todos os últimos jovens detidos em Nafarroa, incluindo os dois que foram presos mesmo à porta da Audiência Nacional (Mikel Jiménez e Aritz Azkona). É, portanto, a principal referência para analisar uma série de operações encadeadas que parecem estabelecer um novo modus operandi policial, marcado pela ampliação do conceito de “incomunicação”. Tudo isso, rodeado pelo silêncio político: ontem, como tinham anunciado, a UPN, o PSN e a CDN vetaram a a possibilidade de os familiares comparecerem no Parlamento, que havia sido proposta pelo Nafarroa Bai. A iniciativa nem sequer atingiu a fase da tramitação.

Vistas as especificidades destas detenções, estamos perante um salto qualitativo?

Não creio. Deter um grande número de jovens, pô-los sob incomunicação e encarcerá-los sob a acusação de constituírem ‘grupos Y’ e participar em acções de kale borroka não é algo de novo, infelizmente. O salto qualitativo tem lugar após a sentença do Supremo Tribunal que declarou “organizações terroristas” a Jarrai-Haika-Segi. Agora, detêm-se jovens comprometidos com actividades políticas e sociais e acusando-os de pertencer a uma organização terrorista e de levar a cabo diferentes acções de sabotagem como membros dessa organização.

Existem paralelismos com a macro-operação de 1996, que causou mais de uma centena de detenções em Nafarroa?

Sim. Estão a deter grupos de jovens que simpatizam ou trabalham em organizações de esquerda e abertzales, colocam-nos sob incomunicação, e, sob tortura e maus tratos, obrigam-nos a declarar contra si mesmos e contra terceiros, geralmente contra os seus próprios grupos de amigos. E usam estas detenções para poder deter e encarcerar, quando eles quiserem, mais jovens.

A sequência é idêntica: primeiro, detenções por ser da Segi; depois, denúncias de tortura durante o período de incomunicação; e, no fim, acusações concretas... De acordo com este esquema, a tortura é a chave para “atar” juridicamente as acusações?

Em primeiro lugar, hoje em dia não sabemos quais são realmente os factos concretos de que são acusados. O processo encontra-se em segredo e apenas conhecemos aquilo que declararam sob tortura, segundo denunciaram. Assim, também não sabemos se possuíam ou não alguma prova de acusação ou se é depois da sua detenção, com essas declarações forçadas, que se constroem as acusações. Em qualquer caso, sobre os objectivos da tortura, não tenho nenhuma dúvida de que é utilizada para forçar as pessoas a declarar contra a sua vontade, e para poder utilizar essa declaração para uma futura condenação. Além disso, pudemos comprovar como as declarações de culpa de que estamos a falar não têm lugar quando essas pessoas declaram por sua própria vontade, sem que haja maus tratos ou tortura.

Basta apenas ser da Segi para dar entrada na prisão? Isto é juridicamente viável?

Sim. É assim desde que o Supremo declarou que a Segi era uma “organização terrorista”. O que acontece é que os tribunais espanhóis estão a chamar “terroristas” a organizações políticas e sociais. Ainda que para muitos seja uma barbaridade e uma violação dos direitos civis e políticos, a verdade é que neste momento basta que acusem alguém de ser membro destas organizações para que o detenham e encarcerem.

O que é que se passou no caso de Aritz Azkona e Mikel Jiménez?

O Aritz e o Mikel realizaram os procedimentos para que o juiz os recebesse depois de terem conhecimento de que a Guarda Civil andava à sua procura. Grande-Marlaska não lhes quis marcar uma comparência no Tribunal, e a única coisa que adiantou foi que, se quisessem, se apresentassem ali fisicamente. E era isso que iam fazer, quando os agentes da Guarda Civil os detiveram às portas da Audiência Nacional. Explicámos isso mesmo tanto aos agentes que os estavam a deter como ao Tribunal, mas mesmo assim Grande-Marlaska recusou-se a receber a sua declaração nesse momento, e estiveram três dias na Direcção-Geral da Guarda Civil.

A Guarda Civil tinha difundido que eles eram da ETA. Porquê e para quê?

Não sei o que é que se procurava com esses rumores, mas nem antes nem depois de ser detidos Aritz e Mikel foram acusados de pertencer à ETA. E, mais ainda, sabia-se que se tinham posto à disposição da Justiça e que não tinham fugido para França para integrarem nenhum comando.

Grande-Marlaska levantou-lhes a incomunicação depois de um período inicial de incomunicação. Por que actuou assim?

Períodos de comunicação ou de incomunicação à parte, o que o juiz deveria ter feito era receber a sua declaração quando se deslocaram com os seus advogados ao Tribunal. O juiz não ratificou o período de incomunicação solicitado pela Guarda Civil. Ao contrário dos outros detidos, que foram mantidos sob incomunicação, não os obrigaram a fazer qualquer declaração contra a sua vontade, mas ainda assim estiveram três dias detidos.

Foi também chocante o caso do “desaparecimento” de Alberto López. Não se pode fazer nada num caso como este?

O que há a fazer é trabalhar para conseguir acabar com o regime de incomunicação que se aplica aos detidos sob a “legislação antiterrorista”, porque é isso que permite que casos como este possam acontecer. Um detido que está sob incomunicação vê limitado o direito de avisar alguém da sua detenção e do lugar em que se encontra, e também o direito de ser assistido por um advogado de confiança. Com o período de incomunicação, a polícia tem liberdade de actuação sem que ninguém se aperceba do que se está a passar.

Depois de cada uma destas detenções, solicitou-se que os detidos passassem a declarar quanto antes (habeas corpus) ou, à falta disto, que se aplicasse o chamado «protocolo Garzón». Como é possível que um juiz aplique estas normas e os outros não o façam?

Precisamente por isso, porque é o protocolo de um juiz, não uma disposição legal. O que Garzón fez naquela altura foi aceitar algumas das recomendações da ONU e da Amnistia Internacional para a erradicação da tortura, e aplicá-las mediante a fórmula do protocolo a alguns detidos. Mas essas medidas não foram introduzidas por lei no Estado espanhol, e isto faz com que o juiz que não as queira não as aplique.

A quase totalidade das instituições, dos partidos e meios de comunicação fizeram vista grossa destas situações. Que avaliação é que a defesa faz disto?

Deparamos com pessoas que acabam de ser detidas e que já foram declaradas culpadas sem que tenham sido provadas as acusações, e sem que tenha havido julgamento algum. Estas pessoas não têm direito à presunção de inocência, nem a uma defesa com as garantias devidas. Uns detêm, “constroem” acusações e vendem eficácia policial, e outros calam-se perante isto. E fazem-no apesar de em muitos casos como este posteriormente se ter demonstrado que as coisas não eram assim, que não havia provas ou que as acusações não eram tais. Nesses casos, embora se absolva ou se arquivem as causas abertas, isso já não interessa e todos guardam silêncio.
Fonte: Gara